RP - 264956 - Sessão: 24/02/2015 às 14:00

Desde que os fatos discutidos nas ações eleitorais ora julgadas vieram a público, todos nós convivemos com a manifestação de opiniões, as mais diversas, acerca da questão posta em jogo – a alegação de que os servidores públicos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul foram obrigados a contribuir para a campanha eleitoral do presidente da Casa Legislativa durante o ano de 2014.

A decisão que devemos tomar hoje, a par do anseio social pelo resultado do julgamento e da turbulência das paixões, deve ser pautada pelo que é certo e justo. O caso concreto nos fez deparar com uma forma sui generis de se fazer campanha que está sendo questionada pelo Ministério Público Eleitoral em diversas ações, e foi inclusive alvo de investigação policial a qual acompanhei, uma vez que o inquérito policial instaurado contra os demandados foi distribuído a minha relatoria.

Inicialmente, observo que a ação de investigação judicial eleitoral tem por escopo verificar se o candidato violou os princípios igualitários do pleito, praticando irregularidades para a captação de votos, através da prática de abuso do poder econômico, político, ou de autoridade, ou, ainda, por uso indevido da máquina administrativa.

No caso concreto, o caderno probatório foi perfeitamente apresentado pelo ilustre relator e evidencia a coação dos servidores públicos detentores de função gratificada do quadro de pessoal do Poder Legislativo Estadual, pela pressão de compra de ingressos de evento de campanha, em flagrante abuso do poder de autoridade e quebra do princípio da igualdade de oportunidades, norteador do processo eleitoral.

A prova testemunhal colhida em juízo é coesa e corrobora os depoimentos prestados tanto perante o órgão ministerial quanto perante a autoridade policial, e demonstra as intimidações e as ameaças de perda das funções feitas aos servidores públicos que se negassem a comprar o convite para o jantar do candidato investigado.

Verifica-se também o cometimento de abuso do poder de autoridade em relação aos estagiários, diante do aliciamento para trabalharem na campanha à reeleição do demandado, inclusive com a entrega das cadernetas em branco, “caderninhos do compromisso” nos quais deveriam ser registrados dados de eleitores, sob a ameaça de dispensa e a promessa de ascensão funcional. Tudo com a supervisão de Artur, coordenador da campanha eleitoral de Gilmar Sossela e ocupante de cargo na alta administração da Assembleia.

É de se destacar, pela gravidade, os trechos de depoimentos que foram transcritos no voto divergente, que bem demonstram a prática de abuso de autoridade. Não há respaldo para a mera suposição de que todas as vítimas, servidores concursados e estagiários, tenham sido capazes de coordenar uma farsa perante a autoridade policial, o Ministério Público Eleitoral e esta Justiça Especializada.

Há abuso de autoridade na medida em que os servidores e estagiários eram intimidados em horário de expediente, durante o período normal de trabalho, mediante uso de coação para que contribuíssem para a campanha do candidato trabalhando, como no caso dos estudantes, ou comprando ingressos no valor de R$ 2.500,00, dirigido aos detentores de função. Além disso, o contexto dos autos mostra ser induvidosa a participação do candidato nos atos abusivos.

A coação de servidores para que alcancem valores aos agentes públicos que detém o poder de nomeação e de exoneração de funções comissionadas evidencia o desequilíbrio do pleito no qual o candidato concorreu, pois não atuou com igualdade perante os demais candidatos ao cargo de deputado estadual. A ameaça de supressão da remuneração com a dispensa dos servidores das funções de chefia que ocupavam configura coação expressa que deve ser repudiada.

Houve verdadeira confusão entre apoio político e o dever de subordinação dos servidores no momento em que se vinculou a permanência de titularidade de função gratificada mediante entrega de valores. Percebe-se que os servidores subordinados aos demandados foram vistos como fonte arrecadatória para campanha e, com isso, foi malferido o princípio de igualdade de oportunidades e o equilíbrio das eleições – pois a candidatura do demandado Gilmar Sossela teve privilégios ao forçar agentes públicos a entregarem recursos financeiros.

A gravidade das circunstâncias, condição legalmente estabelecida para o reconhecimento do abuso do poder político, é conceito jurídico indeterminado, ao qual o intérprete deve dar significado. Alguns intérpretes entenderão, como fez o ilustre relator, que as circunstâncias só seriam graves se atingissem um grande número de eleitores. Assim não entendo. Vivemos, desde a CRFB de 1988, um processo de aperfeiçoamento da sociedade brasileira, em que o direito possui papel central. É o que chamamos de "dogmatização da sociedade", o que nada mais é do que o respeito pelo direito, a superação do patrimonialismo, a promoção dos Direitos Fundamentais, a luta contra a corrupção. E essa luta é travada todos os dias, com enormes avanços e enormes recuos.

Não se trata, no meu entender, de verificarmos se muitas pessoas foram atingidas (e o foram, ainda de que de forma reflexa). Gravidade das circunstâncias, conforme a mudança legislativa promovida, envolve o respeito pelos princípios republicanos, feridos pelo candidato/Presidente. Sim, porque esse candidato era, no tempo dos fatos, o Chefe de um Poder. De qualquer agente público, especialmente de um Chefe do Poder Legislativo, espera-se conduta exemplar, inspiradora de seus colegas e de seus subordinados. Espera-se liderança no processo de transformação social e institucional que nos eleve a uma condição política dogmatizada, civilizada. E, com base no que aqui já se disse nessa tarde, nada disso ocorreu. Houve grave abuso do poder político quando servidores foram coagidos, quando estagiários foram coagidos, quando a estrutura da Assembleia Legislativa foi utilizada para transmissão de SMS (vedados) de conteúdo eleitoral.

Evidencia-se ofensa direta aos termos constitucionais que pregam a normalidade e a legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, não sendo possível relevar a postura do presidente de Poder Legislativo que se beneficia conscientemente do cargo para arrecadar dinheiro dos seus subordinados.

A reprovabilidade do ato abusivo se dá pela improbidade com que agiu o presidente e o seu superintendente geral. Não vejo como entender legítima a compra do ingresso, que todos os servidores consideraram de elevado valor, se a contribuição é realizada por um sentimento subjacente de temor e subserviência. Aos servidores não foi garantida a liberdade de escolha de comprar ou não o ingresso, pois a compra foi imposta por quem detinha o poder hierárquico, uma vez que o cargo era “de confiança do presidente” conforme consta da prova testemunhal.

Há de se ter em mente que o Estado Democrático de Direito é caracterizado por uma estrutura organizacional que transparece a sua legitimidade na vontade popular, tendo como finalidade precípua a efetivação do interesse público primário, como última ratio.

Pesa mais ainda contra os demandados o fato de as ações terem sido realizadas conscientemente, caracterizando inegável ofensa aos princípios que regem a Administração Pública, em especial os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da honestidade, da imparcialidade e da lealdade às instituições. Não é possível que os servidores da Assembleia Legislativa do Estado sejam compelidos a apoiar ou doar valores a esta ou aquela campanha eleitoral, em troca de funções gratificadas, dependendo do partido do deputado que estiver exercendo a presidência da Casa.

Entendo que há nos autos prova consistente de que a candidatura do demandado foi vinculada à administração do Legislativo Estadual, mediante conduta intencional dos agentes causadores do dano.

De igual modo, quanto à RP 2651-26, entendo comprovado que o candidato Gilmar Sossela fez uso indevido de telefone celular funcional, custeado pelo poder público, para envio de mensagem SMS, com conteúdo eleitoral, dirigida ao Procurador Geral do Ministério Público de Contas estadual. Além disso, embora o voto do relator assinale a impossibilidade de caracterização da conduta vedada prevista no inciso III do art. 73 da Lei das Eleições, verifico situação de abuso de poder na constatação de que o servidor Artur Alexandre Souto trabalhou em prol da campanha do candidato durante o horário de expediente normal junto à Assembleia Legislativa do Estado.

Finalmente, quanto ao pedido deduzido com base no art. 30-A da Lei n. 9.504/97, tenho que resta caracterizada a hipótese de captação ilícita de recursos pelo emprego, em campanha eleitoral, de valores obtidos pelo vício da extorsão, na linha do raciocínio exposto no voto divergente.

Importante gizar, em relação à declaração de inelegibilidade do candidato eleito, que os elementos de prova estão a indicar, extreme de dúvidas, a anuência com a conduta de seu coordenador de campanha, não havendo prova alguma de que os atos de Artur tenham sido cometidos à revelia de Sossela.

A prova testemunhal é farta e uníssona no sentido de que o superintendente geral era o braço direito do presidente da Assembleia, e que agia com o seu aval em todos os atos relacionados à campanha. O caderno probatório demonstra que Artur falava em nome de Sossela, a seu mando e com o seu consentimento, e estava à frente da campanha para reeleição do deputado.

A declaração de inelegibilidade pelo prazo de oito anos é consequência grave das ações em que se reconhece prática de abuso de poder e, por conta disso, a jurisprudência consolidou-se no sentido de que o candidato beneficiado só deve ser declarado inelegível se houver demonstração de sua contribuição nos fatos, ainda que seja indireta e na forma de mera anuência.

E é bem verdade que quando os atos abusivos ocorrem em local distante do beneficiário ou são praticados por pessoa que lhe é alheia, fica difícil determinar se possuía ou não conhecimento. Na dúvida se o candidato sabia ou não a inelegibilidade não deve ser cominada.

Mas no caso em tela há esta convicção, pois a situação estava por demais evidenciada: os servidores foram coagidos a comprar os convites durante o horário de trabalho, nas dependências do Parlamento, e foram inclusive chamados a reuniões com esse único fim, tudo durante o horário normal de trabalho e para quem quisesse ver.

Não há notícia de que os fatos tenham sido praticados de forma velada, não se sustentando a ideia de que apenas o Presidente da Assembleia não soubesse. Assim, tem-se um cenário bem desenhado de prática de abuso em que a posição do candidato não pode ser relegada a de mero beneficiário, daí o porquê da declaração de sua inelegibilidade.

À derradeira, anoto que, em recente julgado, o Tribunal Superior Eleitoral manteve, por unanimidade, decisão deste Tribunal que cassou os mandatos eletivos conferidos a prefeito e vice-prefeito, reconhecendo caracterizada hipótese de abuso de poder de autoridade mediante compra de apoio político na pré-organização eleitoral: “negociação como se o apoio político fosse uma mercadoria comprável em dinheiro” (TSE, Respe 19847). Na decisão, o TSE assentou que o julgamento adotou posição mais rigorosa no que diz respeito aos acordos políticos envolvendo trocas não só de cargos, mas de favores e valores monetários.

Nestas circunstâncias, a cassação do mandato eletivo de Gilmar Sossella e a declaração da inelegibilidade de Gilmar e de Artur são medidas justas e adequadas, uma vez que há presença de prova consistente de ofensa à legitimidade do pleito e de captação ilícita de recursos.

Por todo o exposto, com o respeito próprio por todas as opiniões diferentes, estou por acompanhar o voto que deu início à divergência, proferido pela Desembargadora Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère.