RC - 484 - Sessão: 29/01/2015 às 17:00

RELATÓRIO

O Ministério Público Eleitoral – MPE interpôs recurso contra sentença do Juiz da 153ª Zona Eleitoral – Dois Irmãos, que julgou improcedente a denúncia oferecida em 21.3.2014 contra SANDRA MARIA DE CAMARGO, nos seguintes termos (fls. 02-03):

No dia 09 de maio de 2012, nas dependências do Cartório desta 153ª Zona Eleitoral, a denunciada SANDRA MARIA DE CAMARGO inscreveu-se fraudulentamente eleitora (operação de transferência – inscrição eleitoral n. 124712010116) no cadastro de eleitores de Santa Maria do Herval, sem que fosse domiciliada naquele município, não apenas descumprindo os prazos que alude o inciso III do Parágrafo 1º do art. 55 do Código Eleitoral e art. 18, III, da Resolução do TSE n. 21.538/2003 (residência de no mínimo três meses no novo domicílio), como prestando informações falsas à servidora daquela Zona Eleitoral, informando falsamente residir há aproximadamente dois anos na Rua Padre Jacó Erico Schimitt n. 65, Centro, no Município de Santa Maria do Herval, o que não era verdade, assinando serem verdadeiras as informações prestadas no requerimento de alistamento eleitoral, na operação transferência, bem como, para dar aparência de legalidade, inscreveu-se também falsamente no Cadastro Nacional de Usuários do Sistema Único de Saúde como domiciliada em Santa Maria do Herval, alteração no sistema que procedeu no mesmo dia, em 09 de maio de 2012.

Segundo o apurado, a denunciada encontrando-se residindo no Estado do Rio Grande do Sul fazia menos de dois meses, na Rua Tenente Manoel Correia n. 302/307, em Canela/RS, recém vinda de Curitiba/PR, em face de que parentes seus não apenas residiam em Santa Maria do Herval (a sobrinha e bióloga Tatiana Souza de Camargo, esposa/companheira do médico Enrique Falceto de Barros), como eram também contratados temporariamente pelo Município de Santa Maria do Herval, conforme se vê dos contratos anexados, e portanto presumivelmente interessados na reeleição do então prefeito Rodrigo Fritzen, procedeu na transferência irregular do título eleitoral.

ASSIM AGINDO, incorreu a denunciada nas penas do art. 289 da Lei 4.737/65 (Código Eleitoral).

Irresignado, o Parquet recorreu, reprisando argumentos e reforçando a tese de que os maiores interessados na transferência fraudulenta perpetrada por Sandra Camargo seriam sua sobrinha Tatiana de Souza Camargo e o marido desta, Enrique Falceto de Barros, que teriam interesse na reeleição do prefeito, já que possuíam contratos de consultoria com o Município de Santa Maria do Herval e, caso houvesse a reeleição do então chefe do Executivo, as renovações dos pactos seriam facilitadas (fls. 128-130v.).

Com contrarrazões (fls. 133-138), nesta instância, foram os autos com vista ao Ministério Público Eleitoral com atuação perante esta Corte, o qual opinou pelo não provimento do recurso (fls. 143-145).

É o relatório.

 

VOTO

Admissibilidade

Da sentença, o Ministério Público Eleitoral foi pessoalmente intimado em 17.9.2014 (fl. 124), vindo a interpor o recurso em 18.9.2014 (fl. 127). Assim, tenho-o por tempestivo, pois observado o decêndio legal previsto no art. 362 do Código Eleitoral – CE.

Preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.

Mérito

Inicialmente consigno que, à luz do art. 109 do CP, não há ocorrência de prescrição dos fatos com a capitulação delitiva contida na inicial.

Antecipo que não merece acolhimento a irresignação do Parquet.

A ré Sandra Maria de Camargo foi denunciada como incursa nas sanções do art. 289 do CE, por supostamente ter transferido o seu domicílio eleitoral de forma fraudulenta, em 09.5.2012, junto à 153ª Zona Eleitoral – Dois Irmãos, afirmando ter domicílio em Santa Maria do Herval, sem contudo lá residir, consoante a pormenorizada descrição fática da denúncia, acima reproduzida.

Reza a norma de regência:

Art. 289 do CE:

Inscrever-se fraudulentamente eleitor.

Pena - Reclusão até cinco anos e pagamento de cinco a 15 dias-multa.

Sobre o enquadramento do dolo específico na conduta descrita no art. 289 do CE, leciona a doutrina de Suzana de Camargo Gomes (em Crimes Eleitorais. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 87):

A ação típica pressupõe, portanto, a utilização de ardil, artifício ou outro meio malicioso tendente a causar o engodo, a mascarar a realidade, e assim permitir a realização da inscrição do eleitor, quando, na verdade, pelos meios regulares, não estava o agente a preencher todos os requisitos legais ensejadores do registro no cadastro de eleitores. A fraude que se há de considerar nesses casos, ressalta Flávia Ribeiro, é aquela que consiste no emprego de meios astuciosos, de artimanhas, atos escritos ou orais, aptos a levarem outrem a erro. Assim acontece em fazer instruir o pedido de inscrição com documento material ou intelectualmente falso, adulterando nome, idade ou local de residência, enfim todo dado relevante à efetivação do alistamento. (Grifei.)

De ver, ainda, que para efeitos penais o ato de “inscrição eleitoral” engloba o da “transferência” de domicílio eleitoral, como ora se verifica:

Pratica o crime do artigo 289, do Código Eleitoral não só aquele que se inscreve, fraudulentamente, eleitor, como aquele que utilizando ardil de igual natureza transfere o seu título para outra localidade. A transferência, ao exigir o cumprimento de determinados requisitos (Código Eleitoral, artigo 55), dentre eles o de declaração de residência mínima de três meses no novo domicílio eleitoral, implica, em verdade, na formulação de nova inscrição. Tanto isso é verdade que o próprio § 2º do artigo 58, ao cuidar da expedição do novo título eleitoral diz que na folha individual de votação ficará consignado, na coluna destinada a anotações, que a inscrição foi obtida por transferência, fato que também constará do respectivo título eleitoral.

(TRE/SP – RC – 117.797 – Relator Dr. SEBASTIÃO OSCAR FELTRIN.)

Dispôs o juiz eleitoral na sentença, por ocasião da análise da prova coligida (fls. 119-122):

[...]

Desta feita, deve ser absolvida a ré, já que, analisando os autos e as provas produzidas, tem-se que não restou devidamente comprovado o seu dolo no sentido de ter transferido seu título para fins de beneficiar um ou outro candidato. Pelo contrário, além de todas as provas irem no sentido de que a acusada possuía ânimo de em um futuro próximo passar a morar em Santa Maria do Herval, pois naquela cidade possuía vínculos afetivos, já que seus únicos parentes no Rio Grande do Sul lá residiam, o Estado não conseguiu demonstrar que esta teria, falsamente, afirmado que residia na cidade, como alegado em denúncia.

Com efeito, todas as testemunhas corroboraram, de uma forma ou de outra, a tese defensiva. A testemunha Cintia, servidora do Cartório da 153ª Zona Eleitoral, diz não lembrar da acusada, apenas referindo que quando o eleitor não possui comprovante de residência seu, pode apresentar um de parentes ou, ainda, a Carteirinha do SUS. A testemunha Silvia, funcionária pública, da mesma forma, disse não conhecer a ré, também não recordando se esta fez ou não cartão do SUS.

Bastante esclarecedor é o depoimento de Ane Jaqueline, que referiu que a acusada trabalhou algumas vezes com ela em seu salão de estética, mas que, em função do pouco movimento, Sandra teve que tentar trabalho em outra cidade. Referiu, ainda, que Sandra queria continuar trabalhando na cidade, mas que em razão da dificuldade financeira, isso não foi possível. Disse, por fim, que Sandra vinha muito na casa de Tatiana, sua sobrinha.

Fica ainda mais claro o vínculo afetivo com a cidade de Santa Maria do Herval quando do depoimento da sobrinha da ré, Tatiana, e de seu companheiro, Enrique. Ambos afirmam que Sandra era sozinha e que seguidamente visitava-os na cidade. Disseram, também, que são consagrados profissionalmente, ela, doutora bióloga e ele, médico, não havendo necessidade de realizarem tamanha operação fraudulenta para fins de serem beneficiados, uma vez que nunca teriam problemas em arranjar emprego.

Fato que põe fim à controvérsia dos autos, a meu ver, é que Enrique, que alegadamente seria o maior interessado na reeleição do então prefeito Rodrigo Fritzen, já que possui contrato temporário com a administração, até hoje não vota na cidade de Santa Maria do Herval, possuindo como domicílio eleitoral a cidade de Porto Alegre.

Ademais, não restou comprovado que a ré teria falsamente informado à servidora do Cartório Eleitoral que residia na cidade há mais de dois anos ou que tenha referido, quando da confecção da Carteirinha do SUS, que a estava fazendo por pedido de Tania e Enrique.

Com razão.

Também eu analisei o conjunto probatório e não identifiquei prova segura acerca do fato imputado a Sandra, considerada a conformação jurídica e a finalidade da norma em apreço.

O recorrente, ao seu turno, não se desincumbiu do ônus probante que lhe cabia, enquanto propositor da ação, tampouco trouxe novos elementos, nesta instância, que pudessem modificar o sentido do julgado.

Neste contexto, impõe referir que o conceito de domicílio ganhou contornos mais amplos no âmbito eleitoral, não podendo ser confundido com o conceito de domicílio civil, sendo suficiente para a sua configuração a existência de algum tipo de vínculo, a exemplo do familiar, patrimonial, político ou social. São, portanto, diversas as circunstâncias caracterizadoras do vínculo do eleitor com o local em que pretende exercer sua capacidade eleitoral. Basta, portanto, um mínimo de liame do eleitor com a sua circunscrição eleitoral, ainda que ausente o elemento material, vale dizer, a própria moradia.

No caso, restou demonstrada a intenção de Sandra em domiciliar-se no Município de Santa Maria do Herval, local onde reside sua sobrinha Tatiana Souza de Camargo e o marido Enrique Falceto de Barros, não havendo razão para imposição de qualquer sanção, uma vez demonstrado o liame familiar e afetivo.

Outro não foi o posicionamento do Procurador Regional Eleitoral em seu parecer, cujos destaques agrego às razões de decidir (fls. 143-145):

[…]

No entanto, conforme reconhecido pela sentença, não existem suficientes elementos probatórios a justificar um decreto condenatório.

A prova dos autos demonstra claramente o vínculo familiar e afetivo da ré com a cidade de Santa Maria do Herval, o que viabiliza a opção desta comarca como seu domicílio eleitoral, embora residisse, ao tempo dos fatos, em outro local. Nesse sentido, o entendimento já pacificado do Tribunal Superior Eleitoral:

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DOMICÍLIO ELEITORAL. CONCEITO ELÁSTICO. TRANSFERÊNCIA. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 55, § 1º, III, DO CÓDIGO ELEITORAL. NÃO PROVIMENTO.

1. Na espécie, a declaração subscrita por delegado de polícia constitui requisito suficiente para comprovação da residência do agravado e autoriza a transferência de seu domicílio eleitoral, nos termos do art. 55, § 1º, III, do CE. 2. O TSE já decidiu que o conceito de domicílio no Direito Eleitoral é mais elástico do que no Direito Civil e satisfaz-se com a demonstração de vínculo político, social ou afetivo. No caso, o agravado demonstrou vínculo familiar com o Município de Barra de Santana/PB, pois seu filho reside naquele município. 3. O provimento do presente recurso especial não demanda o revolvimento de fatos e provas, mas apenas sua correta revaloração jurídica, visto que as premissas fáticas encontram-se delineadas no acórdão regional. Precedentes. 4. Agravo regimental não provido.

(Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n. 7286, Acórdão de 05.02.2013, Relatora: Min. FÁTIMA NANCY ANDRIGHI, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 050, Data 14.3.2013.) (Grifei.)

ELEIÇÃO 2012. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE CANDIDATO. DEFERIMENTO. DOMICÍLIO ELEITORAL. ABRANGÊNCIA. COMPROVAÇÃO. CONCEITO ELÁSTICO. DESNECESSIDADE DE RESIDÊNCIA PARA SE CONFIGURAR O VÍNCULO COM O MUNICÍPIO. PROVIMENTO.

1) Na linha da jurisprudência do TSE, o conceito de domicílio eleitoral é mais elástico do que no Direito Civil e se satisfaz com a demonstração de vínculos políticos, econômicos, sociais ou familiares. Precedentes. 2) Recurso especial provido para deferir o registro de candidatura.

(Recurso Especial Eleitoral n. 37481, Acórdão de 18.02.2014, Relator Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, Relator designado Min. JOSÉ ANTÔNIO DIAS TOFFOLI, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 142, Data 04.8.2014, Páginas 28-29.) (Grifei.)

Por outro lado, a conclusão de que a transferência do título de eleitor se deu simplesmente para garantir que a sobrinha da ré e o seu companheiro permanecessem com o vínculo empregatício com a prefeitura de Santa Maria do Herval não encontra suficiente amparo na prova dos autos, especialmente porque este último, que supostamente seria interessado na reeleição do prefeito, sequer vota na comarca. Mas, para além disso, não há como se ter a certeza de que a reeleição implicaria na automática renovação das contratações.

Logo, a manutenção da sentença, com a negativa de provimento ao recurso, é medida que se impõe.

Diante do exposto, VOTO pelo não provimento do recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, mantendo integralmente a sentença que absolveu SANDRA MARIA DE CAMARGO da imputação delitiva descrita na denúncia, com fulcro no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.