RC - 202 - Sessão: 02/12/2014 às 16:00

RELATÓRIO

Trata-se de recursos interpostos por FERNANDA RAMBO AGNES, JAIR GRESSLER e MARIA CÉLIA DA SILVA contra sentença do Juízo da 40ª ZE – Santa Cruz do Sul, que julgou procedente em parte a ação penal para condenar os ora recorrentes por corrupção eleitoral, com fulcro no art. 299 do Código Eleitoral, na forma do artigo 71 do Código Penal, às penas de um ano, onze meses e dez dias de reclusão, bem como ao pagamento de dez dias-multa, calculado cada um em 1/5 (um quinto) do salário mínimo vigente ao tempo do fato, para os dois primeiros, e de um ano e três meses de reclusão e cinco dias-multa, cada um calculado em 1/20 (um vigésimo do salário mínimo), para a última (fls. 700-716).

MARIA CÉLIA DA SILVA alega que sua conduta se cingiu a falar aos conhecidos e familiares para que “dessem uma força para a candidata Fernanda eleger-se vereadora”, a pedido do seu “patrão” Jair, padastro da candidata. Relata que trabalha como faxineira na casa de Jair e de Fernanda, consistindo a suposta compra e entrega de cestas básicas uma responsabilidade da candidata, com a ajuda do padrasto (fls. 763-772).

FERNANDA RAMBO AGNES aduz inexistir prova contundente de que tenha participado do esquema de distribuição de ranchos em troca de votos. Argumenta que, dentre todas as pessoas ouvidas em juízo, apenas a informante Raquel apontou que a apelante era partícipe na imputada distribuição de ranchos, inexistindo qualquer outra prova nesse sentido. Requer a reforma da sentença e, caso não seja esse o entendimento perfilado por este Tribunal, pleiteia a redução da pena imposta, equiparando-a à da ré Maria Célia da Silva (fls. 773-783).

JAIR GRESSLER, por sua vez, requer a restituição do seu aparelho celular, apreendido no dia 04.10.12 pelo Poder Judiciário. Destaca que, caso mantida a condenação, a pena a ele cominada não poderia ser idêntica à da candidata, visto que responde apenas pela suposta distribuição das cestas (fls. 784-791).

O Ministério Público Eleitoral ofereceu contrarrazões (fls. 793-800).

Nesta instância, foram os autos com vista à Procuradoria Regional Eleitoral, que, em preliminar, opina pela nulidade do processo, com a consequente extinção do feito sem julgamento do mérito, e, sucessivamente, pelo desprovimento dos recursos (fls. 804-815).

É o relatório.

 

VOTO

1. Admissibilidade

A recorrente Fernanda Rambo Agnes foi intimada da decisão por meio de carta precatória em 02.07.2014 (fl. 758), e o recurso interposto em 11.07.2014, dentro do prazo de 10 dias preconizado pelo art. 362 do Código Eleitoral (fl. 773); Maria Célia da Silva recorreu em 20.06.2014 (fl. 763), todavia, ausente o registro da sua intimação, razão pela qual tenho por tempestivo, até porque a sentença foi prolatada em 13.06.2014, ou seja, quando transcorrido apenas 07 dias; igualmente ausente a data da intimação do recorrente Jair Gressler, cujo recurso foi interposto em 15.07.2014. Ainda que possa gerar dúvida quanto à tempestividade deste apelo, não há como prejudicar o recorrente por falha cartorária.

Considero, portanto, tempestivos todos os apelos.

Presentes os demais pressupostos de admissibilidade, conheço dos recursos interpostos.

2. Preliminar de nulidade da prisão em flagrante e dos procedimentos posteriores

Os recorrentes foram denunciados por dar, oferecer e prometer cestas básicas em troca do voto em favor da candidata Fernanda Agnes.

Em razão de denúncias encaminhadas à Polícia Federal relatando movimentação de pessoas em uma residência particular, foram destacados agentes para o referido local, os quais observaram pessoas saindo da residência com ranchos. Um policial disfarçado simulou tratar-se de eleitor e bateu à porta da casa, questionando o corréu Jair Gressler sobre a possibilidade de ganhar rancho em troca do voto para a candidata Fernanda. Confirmada a prática, a autoridade policial deu voz de prisão a Jair.

Foi possível desvendar o nome dos eleitores que receberam ranchos por meio de uma lista manuscrita pelo próprio Jair, colhida na busca e apreensão procedida. Na audiência de instrução, as pessoas foram ouvidas pelo juízo singular.

Não obstante as condutas ilícitas praticadas pelos réus, trata-se de prova obtida mediante flagrante preparado, não se prestando para firmar juízo condenatório.

A questão mereceu destaque no parecer da douta Procuradoria Regional Eleitoral, que assim se manifestou sobre os acontecimentos:

[…]

Contudo, em que pesem as criminosas condutas praticadas pelos réus, lamentavelmente o processo penal se originou em prova ilícita.

Pela análise do vídeo que consta nos autos percebe-se que um agente policial bate à casa de Jair e, fazendo-se passar por eleitor, convence-o a dar-lhe uma cesta básica em troca do voto para Fernanda. A partir de então, o agente policial dá voz de prisão em flagrante e inicia, juntamente com outros agentes, busca e apreensão na residência de Jair. No entanto, a toda evidência, não havia flagrante real porque o crime era impossível, uma vez que o agente policial jamais poderia ser corrompido. Sem o flagrante, o ingresso na residência de Jair, desprovida da expressa autorização deste e de mandado de busca e apreensão, foi ilegal. E não se diga que o encontro de cestas básicas justificaria o ingresso pois o crime de compra e venda de votos é instantâneo e não permanente. Ademais, não havia certeza absoluta do destino da(s) cesta(s) básica(s) eventualmente armazenada(s) a ponto de identificá-la(s) inequivocamente como produto/objeto de crime.

Deste modo, nenhuma prova obtida a partir do flagrante e da busca e apreensão deve ser considerada para fins de condenação. Assim, as listas contendo anotações de nomes de eleitores, bairros e as correspondentes seções eleitorais, bem como sua subsequente oitiva foram contaminadas com a ilicitude inicial. (Grifei.)

Pertinente reproduzir a Súmula 145 do STF:

145. Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.

Sobre a matéria, colho lição de Fernando da Costa Tourinho Filho (Código de processo penal comentado. 13 ed. Porto Alegre: Saraiva, pág. 819.):

[…] Assim, quando o empregador, no exemplo clássico, suspeitando que os furtos ocorridos na sua empresa são obra de algum empregado e, por isso mesmo, deixado à vontade num determinado setor, como se nele depositasse inteira confiança, mas, ao mesmo tempo, monta um esquema de segurança, com policiais disfarçados de empregados ou de serviçais de limpeza, estrategicamente dispostos e, no exato momento em que o empregado suspeito surrupia o objeto, é surpreendido pelos guardas.... Esse é o flagrante preparado. Por certo que estamos em face de um crime putativo por obra do agente provocador (Hungria. Cometários ao Código Penal, v. 1, t. 2, pa. 101). Assim também o policial que solicita a uma pessoa para passar por usuária e dirigir-se a outra, tida como traficante, para comprar-lhe a droga e, no instante da venda, dá-lhe voz de prisão (TJSP, 1ª Câm. AC 162.191-3-2, j. em 20-6-1994, Rel. Des. Fortes Barbosa, Bol. AASP, n. 1883).

Eugênio Pacelli de Oliveira, ao discorrer sobre o tema em comento, assim se manifesta (Curso de processo penal. 1ª ed., São Paulo: Atlas, p. 515):

A rejeição ao flagrante dito preparado ocorre geralmente por dupla fundamentação, a saber: a primeira, porque haveria, na hipótese, a intervenção decisiva de um terceiro a preparar ou a provocar a prática da ação criminosa e, assim, do próprio flagrante; a segunda, porque dessa preparação, por parte das autoridades e agentes policiais, resultaria uma situação de impossibilidade de consumação da infração de tal maneira que a hipótese se aproximaria do conhecido crime impossível.

Com efeito, a atuação do policial - como agente provocador da conduta ilícita - tem o condão de invalidar as provas carreadas aos autos e aquelas produzidas por derivação. Diferente seria se a conduta fosse de flagrante esperado, considerada válida, segundo a lição do citado doutrinador:

No flagrante esperado, não há intervenção de terceiros na prática do crime, mas informação de sua existência. Ocorreria, por exemplo, quando alguém, que por qualquer motivo tivesse conhecimento da prática futura de um crime, transmitisse tal informação às autoridades policiais, que então se deslocariam para o local da infração, postando-se de prontidão para evitar a sua consumação ou o seu exaurimento. Nesse caso, a ação policial seria de espera, e não de provocação, donde a diferença de ser esse um flagrante válido, ao contrário daquele outro. (Ob. cit., p. 517)

De acordo com a Min. Laurita Vaz, não se deve confundir flagrante preparado com esperado - em que a atividade policial é apenas de alerta, sem instigar qualquer mecanismo causal da infração (HC n. 32708).

A corroborar o entendimento, transcrevo a jurisprudência que segue, em caráter exemplificativo:

CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO - PROVA ILÍCITA - GRAVAÇÃO AMBIENTAL. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. CONTAMINAÇÃO DA PROVA DERIVADA. EFEITOS DA NULIDADE. INICIAL. INDEFERIMENTO. RECURSO PROVIDO.

1. No âmbito da Justiça Eleitoral, o poder de polícia pertence exclusivamente ao Juiz Eleitoral. Razões históricas que remontam a própria edição do Código Eleitoral de 1932 bem demonstram a razão de assim ser.

2. São nulas as atividades exercidas pelos agentes da Polícia Federal que deveriam ter comunicado à autoridade judiciária, ou ao menos ao Ministério Público Eleitoral, desde a primeira notícia, ainda que sob a forma de suspeita, do cometimento de ilícitos eleitorais, para que as providências investigatórias - sob o comando do juiz eleitoral - pudessem ser adotadas, se necessárias.

3. O inquérito policial eleitoral somente será instaurado mediante requisição do Ministério Público ou da Justiça Eleitoral, salvo a hipótese de prisão em flagrante, quando o inquérito será instaurado independentemente de requisição (Res.-TSE nº 23.222, de 2010, art. 8º).

4. A licitude da interceptação ou gravação ambiental depende de prévia autorização judicial. Ilicitude das provas obtidas reconhecida.

5. Inicial e peça de ingresso de litisconsorte ativo que fazem referência apenas às provas obtidas de forma ilícita. Não sendo aproveitáveis quaisquer referências aos eventos apurados de forma irregular, as peças inaugurais se tornam inábeis ao início da ação, sendo o caso de indeferimento (LC 64, art. 22, I, c).

6. Considerar como nula a prova obtida por gravação não autorizada e permitir que os agentes que a realizaram deponham sobre o seu conteúdo seria, nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira, permitir que "a prova ilícita, expulsa pela porta, voltaria a entrar pela janela".

[...]

(RO - Recurso Ordinário n. 190461 - Boa Vista/RR, Acórdão de 28.06.2012, Relator:  Ministro ARNALDO VERSIANI LEITE SOARES.)

 

PENAL. PROCESSO PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES. FURTO. CRIME IMPOSSÍVEL. INEFICÁCIA ABSOLUTA DO MEIO. FLAGRANTE PREPARADO. FLAGRANTE ESPERADO. TENTATIVA.

I - O crime impossível é aquele que jamais poderia ser consumado em razão da ineficácia absoluta do meio empregado ou pela absoluta impropriedade do objeto.

II - Ineficácia absoluta do meio quando o instrumento utilizado não permite, de forma alguma, que o delito se consuma.

III - A distinção entre flagrante preparado e flagrante esperado é bastante delineada. O primeiro - flagrante preparado - é aquele em que o agente é induzido à prática do crime por agente provocador, que tanto pode ser a autoridade policial como terceiros. O traço marcante desta situação de flagrante é a iniciativa da conduta delituosa que, por ser na verdade um simulacro do delito, não cabe na realidade ao sujeito ativo, mas sim ao agente provocador. Totalmente diferente, é o flagrante esperado, situação na qual, a iniciativa do delito é toda do sujeito ativo, que adota a conduta no sentido de praticá-lo, mas é surpreendido ou interrompido pela autoridade ou por terceiros, que logram efetuar a prisão em flagrante, na forma do art. 301 do CPP.

(TRF-2, Processo: ENUL 200950010017500 RJ 2009.50.01.001750-0, Relator: Desembargador Federal ABEL GOMES, Julgamento: 04.05.2012, Órgão Julgador: Primeira Seção Especializada.)

 

[...]

Tampouco há que se falar em crime impossível ou flagrante preparado por obra de agente provocador, eis que o quadro probatório revelou a ocorrência do chamado flagrante esperado, pois os policias apenas cumpriram a sua função, ou seja, se dirigiram ao local para investigar denúncia anônima, não tendo ocorrido induzimento ou provocação para a prática do crime.

[...]

(TJ-RJ- Processo: APL 00097957020118190024, RJ 0009795-70.2011.8.19.0024, Relator: Des. MARCUS QUARESMA FERRAZ, Julgamento: 04.12.2013, Órgão Julgador: Oitava Câmara Criminal.)

Diante dessas circunstâncias, constatado que se consolidou hipótese de flagrante preparado - procedimento que o Direito Penal rechaça e que a Súmula 145 do STF sintetiza como não aceitável -, inexistindo outras provas que não sejam dele derivados, não se pode concordar com o juízo condenatório proferido, dada a verificação de crime impossível.

À vista desses argumentos, forçoso reconhecer que a sentença se reveste de nulidade, porquanto lastreada em provas produzidas a partir de flagrante preparado, sendo aplicável, à espécie, a teoria da árvore dos frutos envenenados, visto que restaram contaminadas de forma derivada as demais provas produzidas, fulminando o processo desde a sua origem.

Diante do exposto, e na linha do parecer ministerial, VOTO por acolher a preliminar de nulidade da denúncia e, por consequência, de todo o processo.