INQ - 131754 - Sessão: 17/03/2016 às 17:00

RELATÓRIO

A Procuradoria Regional Eleitoral formaliza denúncia contra GILMAR SOSSELLA, deputado estadual, e contra ARTUR ALEXANDRE SOUTO, assessor parlamentar, pela prática dos seguintes delitos, conforme síntese da inicial acusatória (fls. 481-498v.):

1. IMPUTAÇÃO DO CRIME DE CONCUSSÃO – ARTIGO 316 DO CÓDIGO PENAL

1.1 Premissa fática em comparação à premissa normativa (artigo 316 do CP)

No período compreendido entre julho a setembro de 2014, no âmbito da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, ARTUR ALEXANDRE SOUTO e GILMAR SOSSELLA, repartindo o domínio funcional do fato, o primeiro valendo-se da função pública de Superintendente-geral da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, e o segundo de sua autoridade de Presidente da Assembleia Legislativa, exigiram, sob ameaças implícitas e explícitas de represália de perda de função gratificada, que servidores da Assembleia Legislativa detentores de tais funções adquirissem ingressos de jantar de arrecadação de recursos para a campanha eleitoral do ano de 2014 de GILMAR SOSSELLA. Assim agindo, os denunciados, de forma livre e consciente, fizeram incidir o tipo penal do artigo 316 do Código Penal em suas condutas.

[…]

2. IMPUTAÇÃO DO CRIME DE USO INDEVIDO DA ESTRUTURA ADMINISTRATIVA PARA FINS ELEITORAIS

2.1. Premissa fática em comparação à premissa normativa (art. 346 c/c o art. 377 do CE)

No período compreendido entre julho a outubro de 2014, GILMAR SOSSELLA, na condição de Deputado Estadual Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, utilizou o celular funcional de que tem posse em razão do cargo para praticar atos de campanha eleitoral. Tal utilização tinha por propósito a obtenção de quociente eleitoral para a coligação de que era candidato e por consequência sua reeleição. Assim agindo, o denunciado, de forma livre e consciente, fez incidir o tipo penal do artigo 346 c/c o artigo 377 do Código Eleitoral em sua conduta, por meio do uso de seu celular funcional, sobretudo pela expedição aproximada de 61.696 (sessenta e um mil e seiscentos e noventa e seis) torpedos com propaganda eleitoral, no período compreendido, conforme dados da empresa TELEFÔNICA BRASIL S.A (VIVO), de 21/06/2014 a 20/10/2014 (folha 843 dos autos da RP 2651-26).

[…]

3. IMPUTAÇÃO DO CRIME DE PECULATO

3.1. Premissa fática em comparação à premissa normativa (art. 312 do CP)

No período compreendido entre julho a outubro de 2014, GILMAR SOSSELLA, na condição de Deputado Estadual Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, utilizou o celular funcional de que tem posse em razão do cargo para praticar atos de campanha eleitoral. Assim agindo, o denunciado, de forma livre e consciente, fez incidir, em concurso formal com o crime descrito no artigo 346 c/c o artigo 377 do Código Eleitoral, em sua conduta, o crime descrito no artigo 312, caput, segunda figura, do Código Penal.

[…]

4. IMPUTAÇÃO DO CRIME DE PROPAGANDA ELEITORAL NO DIA DA ELEIÇÃO

4.1. Premissa fática em comparação à premissa normativa (art. 39, § 5º, inc. III, da Lei 9.504/97)

GILMAR SOSSELLA, no dia 05/10/2014 (domingo, data do pleito eleitoral) enviou 4.989 (quatro mil novecentos e oitenta e nove) torpedos do celular funcional de prefixo 51-9864-0485, o qual tinha/tem a posse em razão de seu cargo de Deputado Estadual, sendo que 4.987 foram enviados até as 15h54min. Logo, GILMAR SOSSELLA, candidato à reeleição ao cargo de Deputado Estadual do Rio Grande do Sul, utilizou o seu celular funcional (51-9864-0485) para divulgar propaganda eleitoral, em benefício próprio e da coligação partidária pela qual concorria. Assim agindo, o denunciado, de forma livre e consciente, fez incidir, em concurso formal, referente apenas ao dia da eleição, com o crime descrito no artigo 346 c/c o artigo 377 do Código Eleitoral, em sua conduta, o crime descrito no artigo 39, § 5º, inciso III, da Lei 9.504/97.

[…]

5. IMPUTAÇÃO DO CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA COM FINALIDADE ELEITORAL

5.1. Premissa fática em comparação à premissa normativa (art. 350 do CE)

GILMAR SOSSELLA, na condição de responsável pelos dados apresentados em sua prestação de contas, fez inserir informações falsas em sua prestação de contas eleitorais referente à sua campanha eleitoral do ano de 2014, para o cargo de Deputado Estadual do Rio Grande do Sul, consistente na apresentação de recibos eleitorais que simulam a prática de doação em dinheiro. Assim agindo o denunciado, de forma livre e consciente, fez incidir o tipo penal do artigo 350 do Código Eleitoral em sua conduta.

[…]

6. LAVAGEM DE CAPITAIS

6.1 Premissa fática em comparação à premissa normativa (art. 1º da Lei 9.613/98)

GILMAR SOSSELLA, na condição de responsável pelos dados apresentados em sua prestação de contas, com objetivo de dissimular a origem delituosa de recursos, declarou, em sua prestação de contas referente ao pleito eleitoral do ano de 2014, recursos eleitorais provenientes de prática de concussão (item 1 da denúncia), como se fossem recursos lícitos provenientes de doação de campanha. Assim agindo, o denunciado, de forma livre e consciente, fez incidir em sua conduta, em concurso formal com o crime de falsidade ideológica para fins eleitorais (art. 350 do CE), o tipo penal do artigo 1º, da Lei 9.613/98.

[…]

7. Conexões

[...]

8. CAPITULAÇÃO LEGAL DAS CONDUTAS

ARTUR ALEXANDRE SOUTO incorre nas penas do artigo 316 do Código Penal.

GILMAR SOSSELLA incorre nas penas do artigo 316 do Código Penal; nas penas do artigo 346 c/c o artigo 377 do Código Eleitoral; nas penas do artigo 312 do Código Penal; nas penas do artigo 39, §5º, inciso III, da Lei 9.504/97; nas penas do artigo 350 do Código Eleitoral e nas penas do artigo 1º da Lei n. 9.613/98.

Requerimentos:

(1) requer sejam os acusados notificados para apresentarem defesa preliminar, nos termos do artigo 4º da Lei n.º 8.038/90, com o posterior recebimento da denúncia, oitiva das testemunhas ao final arroladas, as quais deverão ser intimadas para deporem em Juízo sob as cominações legais, a produção de todos os meios de prova em direito admitidas, entre eles o interrogatório dos acusados, e demais formalidades legais, até final julgamento e condenação;

(2) requer o compartilhamento das provas produzidas na instrução da AIJE 2650-41 e RP 2651-26. Para tanto encaminha-se, em anexo, cópia integral dos autos da RP 2651-26 e dos autos do Procedimento Preparatório Eleitoral nº 1.04.100.000226/2014-91.

Com a denúncia, a Procuradoria Regional Eleitoral apresentou promoção pelo levantamento do sigilo do presente inquérito (fls. 478-479).

Os pedidos do Parquet Eleitoral foram deferidos (fl. 500).

Notificado (fl. 513 e verso), Artur Alexandre Souto apresentou resposta suscitando nulidade por inépcia da denúncia, ao argumento de que seria genérica, sem descrição pormenorizada das atividades consideradas delituosas, limitando o exercício da defesa, que teria sido prejudicado pela ausência de descrição da vontade específica do agente e das circunstâncias em que o crime ocorreu. Além disso, sustentou a ausência de justa causa em razão da falta de indícios mínimos de materialidade. Negou a autoria delitiva e afirma que a denúncia se baseia em presunções de que teriam ocorrido ameaças. Alegou que a dispensa do servidor Nelson Delavand Junior de sua função gratificada foi mero ato do acaso, pois a movimentação de servidores dentro da Assembleia Legislativa é questão corriqueira. Obtemperou que o jantar de campanha não era obrigatório, conforme reconheceu o próprio servidor, inexistindo razões para o recebimento da denúncia. Requereu a rejeição da denúncia por inépcia e falta de justa causa, e a absolvição sumária. Invoca os art. 41; 386, inc. III ou VII; 395, inc. I, II e III; 397; 515 e 516, todos do CPP; art. 5º, inc. LV, da CF; art. 8º, n. 2, al. “b” e “c”, do Pacto de San José da Costa Rica, doutrina e jurisprudência (fls. 515-526).

Gilmar Sossella foi notificado (fl. 512 e verso) e apresentou resposta no dobro do prazo legal invocando o art. 191 do CPC (fls. 528-531). Sustentou a insubsistência das acusações devido à ausência de culpabilidade e atipicidade das condutas, razão pela qual a denúncia não comportaria recebimento. Afirmou que, apesar de a denúncia invocar a teoria do domínio do fato, não imputa conduta que possa corroborar a alegação de que exigiu vantagem indevida sob ameaça de exoneração. Quanto à concussão, alegou que apenas anuiu com a realização do evento e com o valor estabelecido no convite, e que não concordou com o seu oferecimento a servidores nem autorizou o uso de qualquer forma de coação, não havendo que se falar em coautoria ou em domínio dos fatos. Asseverou que o receio de perda de cargos comissionados escapa ao tipo penal invocado, pois a competência para tal desiderato não é afeta à Superintendência-Geral e, sim, à Mesa Diretora da Assembleia, que é composta por sete parlamentares, conforme Resolução n. 2.861/01. Apontou que a prova que acompanha a denúncia é imprecisa e genérica, imprestável à abertura da persecução penal, e que os servidores ouvidos nas ações eleitorais cíveis estavam descontentes devido à implantação do ponto biométrico na sua gestão como presidente da Assembleia Legislativa. Argumentou que a compra dos convites por parte dos servidores que ocupavam funções de confiança, mesmo após a exoneração de Nelson Delavand Júnior da função gratificada que ocupava, não ocorreu em razão de ameaças, e que os servidores eram filiados ou simpatizantes do partido pelo qual se elegeu deputado, o PDT. No que se refere ao delito tipificado no art. 377 do Código Eleitoral, aduziu que, por orientação da própria Assembleia, desde eleições anteriores, durante o período eleitoral, faz-se uso da linha telefônica funcional com posterior ressarcimento, e que a conduta é atípica por se tratar de uso de telefone celular e não de serviço, prédio público ou suas dependências. No que tange ao peculato, sustentou a atipicidade delitiva em função de a própria Assembleia ter arcado com o custo das despesas pelo uso da linha telefônica funcional, as quais posteriormente foram ressarcidas, e que a hipótese se amoldaria mais ao peculato de uso, o qual não constituiria crime segundo a jurisprudência do STF que colaciona. Em relação ao delito de propaganda na data da eleição, sustentou a atipicidade devido ao fato de a ação ter sido praticada mediante mensagem de texto enviada e recebida por meio de telefone celular, situação que se equipararia à propaganda veiculada em rede social. No tocante à falsidade ideológica, aponta que nenhuma das pessoas que adquiriu o convite para o jantar afirmou que o fez em função de coação ou ameaça. Por fim, relativo à lavagem de capitais, argumentou que nunca houve a tentativa de ocultar ou dissimular a origem dos recursos arrecadados durante a campanha. Requereu a rejeição da denúncia por falta de culpabilidade em relação ao crime de concussão, e em razão da atipicidade quanto aos demais delitos (fls. 539-568).

Os autos vieram conclusos.

Em sessão, a Procuradoria Regional Eleitoral requereu o arquivamento do presente inquérito policial quanto aos demais indiciados pela Polícia Federal: Ivan Ferreira Leite, Jair Luís Müller, Ricieri Dalla Vallentina, Andreza Macedo Teixeira, Melania Beatriz Tonial Sossella, Fernanda Schnorr Paglioli, com a ressalva do disposto no art. 18 do CPP.

É o relatório.

 

VOTO

Os fatos relatados na denúncia foram analisados por este Colegiado na sessão de 24.02.2015, quando do julgamento conjunto das ações cíveis ajuizadas pela Procuradoria Regional em desfavor dos denunciados, ação de investigação judicial eleitoral AIJE n. 2650-41 e representações eleitorais RP n. 2651-26 e RP n. 2649-56, nas quais foram reconhecidas práticas de abuso de poder político e de autoridade, captação e gastos ilícitos de recursos e condutas vedadas a agentes públicos, em acórdão assim ementado:

Ação de investigação judicial eleitoral. Representações. Abuso de poder. Art. 22, XIV e XVI, da Lei Complementar n. 64/90. Captação ilícita de recursos. Art. 30-A, § 2º, da Lei n. 9.504/97. Captação ilícita de sufrágio. Art. 41-A, § 2º, da Lei n. 9.504/97. Condutas vedadas. Art. 73, caput, inc. II e §§ 4º, 8º e 9º, da Lei n. 9.504/97. Eleições 2014. Julgamento conjunto diante da conexão entre os feitos, na forma do art. 103 do Código de Processo Civil. Destacada, de ofício, a ilegitimidade passiva de representados na demanda por captação irregular de recursos. Legitimidade que decorre da aptidão para ser diplomado em cargo eletivo. Carência de objeto. Extinção do processo, sem resolução do mérito, com relação a estes, exclusivamente quanto à ação lastreada no art. 30-A da Lei das Eleições. Demais preliminares afastadas ou relegadas para análise conjunta ao mérito. 1. Abuso de poder político e de autoridade. Utilização da ascendência hierárquica para pressionar servidores públicos, detentores de função gratificada, em período extenso e próximo à eleição, a adquirir convites de valor expressivo para evento, a título de doação, sob ameaça de perda de benefícios. Conjunto probatório evidenciando a ocorrência de atos repetidos e continuados de coação e intimidação, em benefício da campanha eleitoral de candidato à reeleição ao cargo de deputado estadual, na época dos fatos exercendo a Presidência da Assembleia Legislativa do Estado. Demonstrada a prática do abuso de poder de autoridade, em ofensa à normalidade do pleito. Reconhecida a gravidade das circunstâncias a legitimar as sanções advindas do art. 22, XIV, da Lei das Inelegibilidades. 2. Captação ilícita de recursos. Ainda que aparente a legalidade no trâmite das doações, há, no caso, vício de origem, à medida que demonstrada a arrecadação através do uso da coação e ameaça dos doadores, afastando o pressuposto da voluntariedade de um contrato de doação. Relevância jurídica do ilícito praticado, diante do caráter altamente reprovável da conduta, restando adequada e proporcional a penalidade impingida pela norma. 3. Condutas Vedadas. Utilização de telefone funcional em benefício da campanha eleitoral, caracterizando indevida vantagem sobre os demais concorrentes ao pleito. Lesividade moderada da conduta, restando suficiente a reprimenda de multa ao candidato e à coligação. 4. Captação ilícita de sufrágio. Inexistência de prova robusta a corroborar a tese da compra de votos. Improcedência. Comprovada a ocorrência de práticas ofensivas ao princípio constitucional da moralidade e aos ditames que pregam a legitimidade do pleito, impõe-se a cassação do diploma e a declaração de inelegibilidade do candidato eleito e do representado coordenador da campanha. Cômputo dos votos obtidos em favor da coligação pela qual o representado candidato disputou o pleito. Procedência parcial da AIJE 2650-41. Procedência parcial da RP 2651-26. Improcedência da RP 2649-56.

(TRE-RS, AIJE: 2650-41 RS, rel: DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, red. acórdão: Desa. Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, Data de Julgamento: 24.02.2015, Data de Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 34, Data 27.02.2015, Página 5.)

Contra o acórdão, foi interposto recurso ao TSE, que atribuiu efeito suspensivo à decisão. O apelo aguarda julgamento.

Cumpre, agora, analisar o pedido de recebimento da denúncia e abertura da persecução penal em face do cometimento dos mesmos fatos, devido a sua possível caracterização como ilícitos penais e à independência entre as instâncias cível e criminal.

Inicialmente, em relação à apresentação de resposta de Gilmar Sossella no dobro do prazo de 15 dias previsto no art. 4º, § 2º, da Lei n. 8.038/90, destaco que o Tribunal Superior Eleitoral tem jurisprudência consolidada no sentido de que a contagem de prazo em dobro prevista no art. 191 do CPC não se aplica aos processos eleitorais, conforme depreende-se do seguinte precedente:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTEMPESTIVIDADE.

1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, recebem-se como agravo regimental os embargos de declaração com pretensão. Infringente opostos contra decisão monocrática. Precedentes.

2. O art. 191 do Código de Processo Civil, que estabelece a contagem de prazo em dobro no caso de litisconsortes com diferentes procuradores, não se aplica aos feitos eleitorais. Precedentes: ED-AgR-AI nº 839-38, rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJe de 25.6.2015; AgR-REspe nº 366-93, rel. Min. Arnaldo Versiani, DJe de 10.5.2011; AgR-AI nº 578-39, rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJe de 3.3.2011; ARESPE nº 27.104, rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJe de 14.5.2008; ARO nº 905, rel. Min. José Gerardo Grossi, DJ de 23.8.2006; ED-AgRg-REspe nº 21.322, rel. Min. Gomes de Barros, DJ de 6.8.2004; AgRg-AG nº 1.249, rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ de 24.3.2000.

Embargos de declaração recebidos como agravos regimentais, aos quais se nega provimento.

[…]

(TSE – AgRgRESPE n. 358-78, Relator Min. HENRIQUE NEVES DA SILVA, DJE 24.11.2015.) (Grifei.)

No entanto, verifica-se que a questão foi tratada pelo TSE apenas nos autos de processos cíveis eleitorais, não havendo notícia de enfrentamento da matéria em ação penal eleitoral.

O presente inquérito segue o rito das ações penais originárias estabelecido na Lei n. 8.038/90 e, recentemente, o Plenário do STF fixou o entendimento de que, quando se tratar de processo com mais de um investigado, com diferentes advogados, o prazo de 15 dias para apresentação de resposta previsto no art. 4º, § 2º, da Lei n. 8.038/90, será contado em dobro pela aplicação analógica do art. 191 do Código de Processo Civil (STF, Inq 3983/DF, Relator orig. Min. Teori Zavascki, Red. p/ o acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 03.9.2015 – Informativo n. 797).

Assim, tenho que este Tribunal deve seguir a posição adotada pelo STF para os processos que tramitam sob o rito da Lei n. 8.038/90, concedendo-se prazo em dobro para apresentação da resposta preliminar de Gilmar Sossella.

Em relação ao teor das acusações, passo ao exame dos delitos tipificados na denúncia:

1. Concussão - art. 316 do Código Penal

A imputação do delito de concussão a ambos denunciados refere-se ao jantar para a reeleição de Gilmar Sossella ao cargo de deputado estadual nas eleições gerais de 2014. Para o evento, foram confeccionados convites no valor de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), quantia que seria aplicada na campanha.

De acordo com a denúncia, Gilmar Sossella, que ocupava o cargo de presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, e Artur Alexandre Souto, seu coordenador de campanha e superintendente-geral da Assembleia, decidiram vender os convites aos servidores efetivos que ocupavam funções gratificadas na Casa, coagindo-os a comprá-los sob pena de perderem suas funções de confiança, ameaça que teria sido reforçada com a exoneração da função gratificada exercida pelo servidor Nelson Delavand.

Afirma-se que Artur teria se valido da função pública de superintendente-geral da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul e exigiu, sob ameaça implícita e explícita de represália de perda de função gratificada, que servidores detentores de funções gratificadas a ele subordinados comprassem os convites de jantar de apoio à campanha eleitoral de SOSSELLA, o qual foi realizado no dia 03/09/2014.

Gilmar Sossella, com arrimo na sua autoridade como presidente do Poder Legislativo, teria o domínio funcional dos fatos praticados por Artur, porque ordenou que assim se procedesse, dando o seu imprescindível consentimento para a realização dos atos de arrecadação de fundos de campanha por meio de vendas de convites praticadas por ARTUR, pois sem sua determinação para que se procedesse ao jantar, jamais a forma de arrecadação protagonizada por ARTUR teria acontecido.

A propósito, cumpre destacar que a inicial acusatória possui item específico nomeado de Ações de ARTUR ALEXANDRE SOUTO, no qual se assevera que o denunciado deliberou por distribuir os convites no sentido da cadeia de subordinação Superintendência-Geral - Superintendências - Departamentos. [...] com um elemento comum – o exigir que se compre —, sob tons de ameaça de perda de funções/gratificações [...] (fl. 481v.).

Há também descrição expressa das ações supostamente perpetradas pelo codenunciado Gilmar, no título Ações de GILMAR SOSSELLA contido na inicial acusatória (fl. 483v.).

Portanto, em relação a cada acusado foram citadas as circunstâncias que de alguma forma apontam para o seu envolvimento nos fatos supostamente criminosos objeto da acusação, dessumindo-se, dessa forma, que a descrição oferecida pela Procuradoria Regional Eleitoral afigura-se suficiente, da qual se pode facilmente aferir a atuação particularizada dos demandados nas condutas delituosas que lhe foram imputadas.

Quanto à descrição da vontade específica dos agentes, a inicial acusatória e a prova juntada demonstram a existência de severos indícios de dolo na participação por parte dos denunciados, que teriam sido movidos pelo interesse em angariar recursos financeiros e votos para a campanha eleitoral de Sossella, o que conduz ao recebimento da denúncia, pois a peça é clara e específica, observou a adequação típica, permite a ampla defesa e preenche os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal.

Além disso, observa-se que a denúncia menciona o cometimento do delito em relação a 19 servidores, afirmando que foram arrecadados R$ 57.500,00 mediante a venda de 23 convites a estes.

O fato narrado, em tese, subsume-se ao tipo que, na lição de Pagliaro e Costa Jr., é crime contra a administração pública, o qual se apresenta numa forma especial de extorsão praticada por funcionário público valendo-se do cargo que exerce. A diferença da concussão para a corrupção estaria na unilateralidade do crime, pois a corrupção comporta tanto o corrupto quanto o corruptor, sendo que na concussão o particular surge como vítima ou ofendido em contraposição ao ofensor (PAGLIARO, Antonio; COSTA JR., Paulo José da. Dos crimes contra a administração pública. São Paulo: Atlas, 4. ed., 2009, p. 83).

Embora a gravidade da acusação, a análise da documentação acostada nos autos principais e nos onze volumes dos anexos ao feito permite concluir pela existência de suficiente acervo probatório a apontar o possível envolvimento dos agentes nos fatos descritos pelo Parquet na denúncia, devendo-se instaurar a ação penal para, na sua fase instrutória, apurar-se com mais profundidade a efetiva atuação de cada denunciado de maneira a propiciar a formação segura e embasada do convencimento judicial.

No pertinente ao juízo de culpabilidade penal, de igual modo, tem-se que apenas a instrução poderá demonstrar se os agentes, nas circunstâncias em que se encontravam, podiam conhecer o injusto e adequar o seu comportamento de acordo com esse conhecimento.

A fase na qual se examina a admissibilidade da denúncia não comporta a análise meticulosa das provas que embasam a acusação, bem como das teses jurídicas ventiladas pelas partes, porque tal procedimento somente é cabível após a realização da instrução processual, quando do julgamento do mérito.

Por tal razão, esta não é a etapa oportuna para que sejam detidamente apreciadas as alegações dos denunciados sustentando a não ocorrência do dolo específico exigido à configuração dos delitos, ou ainda a insubsistência dos depoimentos colhidos em procedimentos diversos, e os outros tantos argumentos das respostas preliminares que demandam detida análise meritória.

Além disso, anoto que embora seja crime comum, a apuração da concussão deve ser realizada no âmbito desta Justiça Especializada em face da conexão com o crime de falsidade ideológica eleitoral, motivo pelo qual assiste razão à Procuradoria Regional Eleitoral ao apontar a existência de conexão teleológica e probatória.

De fato, ocorrendo o ilícito, na hipótese, o art. 350, CE (falsidade ideológica eleitoral), e o comum, art. 316, CP (concussão), e havendo entre eles (falso e concussão) relação de conexão ou continência, há evidente competência desta Justiça para o processamento do feito, na interpretação sistemática do art. 31, I, “d”, do Regimento Interno deste Tribunal, c/c art. 35, II, e 364, ambos do Código Eleitoral.

O art. 31, I, “d”, do Regimento Interno do TRE-RS dispõe que compete a este Regional processar e julgar, originariamente:

d) os crimes eleitorais cometidos pelos secretários de Estado, deputados estaduais, procurador-geral de Justiça, consultor-geral do Estado, membros do Tribunal de Alçada do Estado, da Corte de Apelação da Justiça Militar do Estado, dos juízes federais, do trabalho e estaduais de primeiro grau e dos juízes eleitorais, bem como dos agentes do Ministério Público Estadual, dos prefeitos municipais e de quaisquer outras autoridades estaduais que, pela prática de crime comum, responderiam a processo perante o Tribunal de Justiça do Estado;

O art. 35, inc. II, do Código Eleitoral, atribui a esta Justiça Especializada a competência para processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais. O art. 364 do Código Eleitoral, de igual modo, dispõe que, no processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, assim como nos recursos e na execução, que lhes digam respeito, aplicar-se-á, como lei subsidiária ou supletiva, o Código de Processo Penal.

A competência da Justiça Eleitoral em matéria penal foi recentemente discutida em decisão monocrática da lavra da Min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura, nos autos do RESPE n. 2752 (DJETSE de 26.11.2015), na qual referiu que a atração da competência por conexão objetiva ou teleológica é entendimento tranquilo da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, citando os seguintes precedentes:

HABEAS-CORPUS. ARTS. LXVIII, DA CF E III, DO CPP. PEDIDO DE LIMINAR. DEFERIDO. SUSPENSÃO AUDIÊNCIA ADMONITÓRIA. CRIMES CONEXOS. ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL, NULIDADE POR NÃO-OBSERVÂNCIA DE RITO ESPECIAL (ART. DO CPP) E ILEGALIDADE DA PRISÃO. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. ORDEM DENEGADA. LIMINAR CASSADA. - Verificada a conexão entre crime eleitoral e comum, a competência para processar e julgar ambos os delitos é da Justiça Eleitoral. (CF, art. 109, inciso IV, e CPP, art. 78, inciso IV). - O procedimento previsto nos arts. 513 e seguintes do CPP se reserva aos casos em que a denúncia veicula tão-somente crimes funcionais típicos. O habeas corpus não é meio próprio para exame aprofundado de questões envolvendo fatos complexos, dependentes de prova. Ordem denegada. Liminar cassada.

(TSE - HC: 567 SE, Relator: MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 18.3.2008, Data de Publicação: DJ - Diário da Justiça, Data 08.4.2008, Página 7.)

 

CRIME ELEITORAL E CRIME COMUM DE QUADRILHA OU BANDO.

1. Competência. Compete a Justiça Eleitoral processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhes forem conexos (Cód. Eleitoral, art. 35-II e 364). Prescrita a pretensão punitiva quanto ao crime eleitoral, remanesce a competência da Justiça Eleitoral para o crime comum.

2. Inépcia da denúncia e falta de justa causa para a ação penal. Improcedência.

3. Ordem de "habeas corpus" denegada.

(TSE, HC n. 325, Relator Min. NILSON VITAL NAVES, DJ 12.6.1998.)

Verifica-se a hipótese de conexão objetiva ou teleológica, prevista no art. 76 do Código de Processo Penal, de modo que a competência para o processamento e julgamento de todos os delitos é da Justiça Eleitoral, conforme prescreve o art. 78, IV, do CPP (no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta).

Da mesma forma, no pertinente ao foro privilegiado por prerrogativa de função, tenho por correto o entendimento no sentido de que há continência por concurso de agentes, situação determinante para a reunião dos processos e julgamento no foro privilegiado do Deputado Gilmar Sossella. Quanto ao tema, merece registro o enunciado da Súmula n. 704 do STF: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.

Portanto, quanto à suposta prática do crime de concussão (art. 316 do Código Penal), a leitura atenta da denúncia demonstra que os fatos foram narrados de maneira clara, com a indicação da atuação individualizada de cada agente denunciado, possibilitando, assim, o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa por parte de Artur e de Gilmar, não ocorrendo quaisquer das hipóteses de absolvição sumária previstas no art. 397 do Código de Processo Penal.

Assim, tenho por preenchidos os requisitos do art. 41 do CPP, pois há suporte probatório de autoria e materialidade suficiente para o juízo de recebimento da denúncia.

2. Falsidade ideológica com finalidade eleitoral - art. 350 do Código Eleitoral

A acusação de que Gilmar Sossella teria praticado o tipo penal de falsidade ideológica para fins eleitorais relaciona-se ao recibo de doação eleitoral que os adquirentes teriam de assinar no ato da compra dos convites, e sua posterior inserção na prestação de contas de campanha.

Segundo a Procuradoria Regional Eleitoral, os recibos, que teriam sido assinados sob ameaça, guardariam em si o vício da falsidade ideológica, uma vez que simulariam a prática de doação em dinheiro de pessoas físicas à campanha.

O principal argumento é o de que os doadores não teriam praticado transmissão espontânea de recursos.

Em razão disso, a Procuradoria Regional Eleitoral afirma que Gilmar fez inserir informações falsas em sua prestação de contas eleitorais referente à sua campanha eleitoral do ano de 2014, para o cargo de Deputado Estadual do Rio Grande do Sul, consistente na apresentação de recibos eleitorais que simulam a prática de doação em dinheiro.

Ou seja, haveria falsidade por vício de vontade do doador ao firmar recibo de doação eleitoral no raciocínio de que o registro da doação na prestação de contas de campanha representaria inserção de dado falso.

Em princípio, a não espontaneidade da entrega do valor em face da coação guarda coerência com a conclusão de que o fato se subsumiria à conduta de inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, a teor do art. 350 do Código Eleitoral.

De acordo com os fatos alegados, há que se discutir sobre a validade da manifestação de vontade registrada no documento, pois se argumenta que, embora verdadeiro sob o aspecto material, os recibos de doação seriam ideologicamente falsos, porque neles estaria reduzida a termo uma situação forjada. Conforme aponta Suzana de Camargo Gomes ao examinar o tipo, a falsidade de que cogita a norma penal não é de forma, mas de conteúdo (Crimes eleitorais. 4. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 279).

Embora não se mostre possível, quando do recebimento da denúncia, a redefinição judicial de classificação dos fatos narrados na denúncia, procedimento que deve ser realizado por meio de emendatio libelli ou de mutatio libelli, observo que, apesar de não ter sido capitulado o tipo penal previsto no art. 353 do Código Eleitoral, a historicidade da narrativa amoldar-se-ia também ao crime de uso do documento falso, verbis:

Art. 353. Fazer uso de qualquer dos documentos falsificados ou alterados, a que se referem os artigos 348 a 352:

Pena - a cominada à falsificação ou à alteração.

Essa conclusão é alcançada pelo seguinte excerto da denúncia em que se alega que o falso atribuído a Gilmar Sossella consistiria na apresentação de recibos eleitorais que simulam a prática de doação em dinheiro (fl. 491v.):

GILMAR SOSSELLA, na condição de responsável pelos dados apresentados em sua prestação de contas, fez inserir informações falsas em sua prestação de contas eleitorais referente à sua campanha eleitoral do ano de 2014, para o cargo de Deputado Estadual do Rio Grande do Sul, consistente na apresentação de recibos eleitorais que simulam a prática de doação em dinheiro. Assim agindo o denunciado, de forma livre e consciente, fez incidir o tipo penal do artigo 350 do Código Eleitoral em sua conduta.

A questão já foi tratada por este TRE no julgamento do RC n. 635038, de minha relatoria (DEJERS de 26.9.2013):

Recurso criminal. Crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso. Arts. 350 e 353 do Código Eleitoral. Princípio da Consunção. Procedência da denúncia no juízo originário. Afastadas as prefaciais de nulidade da denúncia. A não observância do prazo de 10 dias, previsto no art. 357 do Código Eleitoral, não enseja a nulidade do processo. Tampouco há falar em nulidade quando as investigações têm início em denúncia anônima a qual resta devidamente apurada em diligências posteriores. Comprovada a falsidade ideológica das declarações contidas nos recibos eleitorais, assim como a autoria dos delitos. Aplicável o princípio da consunção, restando configurado um único crime, porquanto o uso do documento falso representa mero exaurimento do delito de falsidade ideológica. Redução da multa imposta ao valor mínimo legal, dada a natureza dos recibos eleitorais, considerados documentos privados na esfera penal, já que despiciendo o seu preenchimento por funcionário público. Provimento parcial.

(TRE-RS, RC 635038 RS, deste relator, DEJERS  de 26.9.2013.)

Com efeito, considerando que a falsidade ideológica seria o crime meio para a consecução do crime de uso de documento falso, o uso absorveria o falso por aplicação do princípio da consunção. Nesse sentido, a lição de Guilherme de Souza Nucci: a prática dos dois delitos pelo mesmo agente implica no reconhecimento de um autêntico "crime progressivo", ou seja, falsifica-se algo para depois usar (crime meio e crime fim). Deve o sujeito responder somente pelo uso de documento falso (Código penal comentado. 6. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 976).

Com esses fundamentos, evidencia-se estarem atendidos os requisitos do art. 41 do CPP, havendo indícios suficientes de autoria e de  materialidade para o recebimento da denúncia.

3. Lavagem de capitais - art. 1º da Lei n. 9.613/98

O cometimento do crime de lavagem de capitais ampara-se na alegação de que a juntada dos recibos aos autos das contas serviria para dissimular a natureza ilícita dos valores, supostamente obtidos mediante concussão, por meio dos dados informados na prestação de contas de campanha eleitoral.

O fato atrairia a incidência do tipo penal previsto no art. 1º da Lei n. 9.613/98, em concurso formal com o crime descrito no art. 350 do Código Eleitoral, ambos delitos conexos ao crime de concussão.

A imputação demanda maior reflexão.

O art. 1º da Lei n. 9.613/98 prevê como crime de lavagem de capitais a ação de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas (UNDCP), publicou na internet uma cartilha intitulada “Lavagem de Dinheiro - Um Problema Mundial” (Disponível em: http://www.coaf.fazenda.gov.br/menu/pld-ft/publicacoes/cartilha.pdf/view), onde consta o seguinte conceito do crime:

Lavagem de dinheiro é o processo pelo qual o criminoso transforma recursos ganhos em atividades ilegais em ativos com uma origem aparentemente legal. Essa prática geralmente envolve múltiplas transações, usadas para ocultar a origem dos ativos financeiros e permitir que eles sejam utilizados sem comprometer os criminosos. A dissimulação é, portanto, a base para toda operação de lavagem que envolva dinheiro proveniente de um crime antecedente.

Marco Antônio de Barros define o tipo como o conjunto de operações comerciais e financeiras que buscam a incorporação, na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de origem ilícita para dar-lhe aparência legal (BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas: com comentário, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 46).

As origens da Lei de Lavagem e a sua relação com o Direito Penal econômico demonstram que o processo de lavagem de dinheiro compõe-se de fases realizadas sucessivamente (colocação, ocultação e integração), que têm por finalidade introduzir na economia ou no sistema financeiro, bens, direitos ou valores procedentes de crimes (BONFIM, Márcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 28). As referidas fases são assim definidas pelo COAF:

1. Colocação – a primeira etapa do processo é a colocação do dinheiro no sistema econômico. Objetivando ocultar sua origem, o criminoso procura movimentar o dinheiro em países com regras mais permissivas e naqueles que possuem um sistema financeiro liberal. A colocação se efetua por meio de depósitos, compra de instrumentos negociáveis ou compra de bens. Para dificultar a identificação da procedência do dinheiro, os criminosos aplicam técnicas sofisticadas e cada vez mais dinâmicas, tais como o fracionamento dos valores que transitam pelo sistema financeiro e a utilização de estabelecimentos comerciais que usualmente trabalham com dinheiro em espécie.

2. Ocultação – a segunda etapa do processo consiste em dificultar o rastreamento contábil dos recursos ilícitos. O objetivo é quebrar a cadeia de evidências ante a possibilidade da realização de investigações sobre a origem do dinheiro. Os criminosos buscam movimentá-lo de forma eletrônica, transferindo os ativos para contas anônimas – preferencialmente, em países amparados por lei de sigilo bancário – ou realizando depósitos em contas “fantasmas”.

3. Integração – nesta última etapa, os ativos são incorporados formalmente ao sistema econômico. As organizações criminosas buscam investir em empreendimentos que facilitem suas atividades – podendo tais sociedades prestarem serviços entre si. Uma vez formada a cadeia, torna-se cada vez mais fácil legitimar o dinheiro ilegal.

Todo o estudo do tema evidencia que a lavagem de dinheiro envolve uma reunião de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação, na economia, de bens ou valores de origem ilícita, por meio de um processo ou conjunto de atos que se desenvolve, teoricamente, em três etapas.

Entretanto, no caso dos autos, a denúncia aponta que, em razão das alegadas ameaças, a declaração de que os recursos foram entregues na forma de doação para campanha eleitoral (por emissão e utilização dos indigitados recibos de doação eleitoral) poderia ser entendida, além de hipótese de falsidade ideológica, como uma forma de ocultação ou de dissimulação da origem ilícita do dinheiro, o que configuraria, em tese, lavagem de dinheiro.

Consideradas as fases do tipo penal antes descritas, tem-se que a narrativa fática não menciona a presença dos elementos do tipo, pois a inicial aponta que o convite para o jantar foi distribuído ao público em geral e aos servidores com expressa menção do valor, R$ 2.500,00, impressos no próprio documento.

A intenção de que o dinheiro arrecadado fosse investido na campanha de Gilmar Sossella era manifesta, tendo sido declarado à Justiça Eleitoral a real fonte dos recursos, alcançados por pessoas físicas. Além disso, os autos dão conta de que o evento de campanha foi inclusive comunicado a este Tribunal (fl. 58).

A denúncia não revela circunstâncias que evidenciam ação objetivando colocação ou conversão de valores, entendida essa como a separação física do dinheiro dos autores dos crimes antecedentes; dissimulação de sua origem para dificultar o rastreamento dos recursos, e integração a fim de o dinheiro voltar a integrar o patrimônio “lícito” do candidato.

Esses elementos são essenciais à caracterização do crime de lavagem de capitais, consoante lição de Marco Antônio de Barros (2007, p. 48) e elucidativo precedente do TRF da 4ª Região:

No crime de lavagem de dinheiro os recursos auferidos com prática ilícita são colocados, dissimulados e, por fim, integrados no mercado para que se desvinculem de sua origem. O criminoso produz uma interação entre a economia legal e ilegal com o intuito de conferir honorabilidade ao seu patrimônio e afastar quaisquer desconfianças que recaiam sobre a fonte ilícita de seus recursos.

(TRF4, ACRn. 128558820034047200 SC 0012855-88.2003.404.7200, Relator LEANDRO PAULSEN, Oitava Turma, D.E. de 10.7.2014.)

Tais fases não estão minimamente demonstradas na denúncia.

Assim, o exame dos fatos, já nesta fase inicial, denota que a forma como foi captada e tratada a importância auferida com o jantar de campanha difere da sistemática adotada nos crimes de lavagem de capitais.

Reforça esse raciocínio o fato de que, para aplicar bens e valores na campanha eleitoral, os candidatos estão obrigados, por força da Lei das Eleições e das resoluções que regulamentam o pleito, a emitir recibos eleitorais e declarar o ingresso dos recursos na prestação de contas de campanha.

Embora as afirmativas de que o dinheiro foi alcançado pelos servidores em razão da prática do delito de concussão, mediante ameaças de perda de funções gratificadas, e de que o recibo eleitoral de doação para a campanha guardaria em si o vício de vontade que caracterizaria a falsidade ideológica eleitoral, não se mostra razoável configurar como lavagem de dinheiro o cumprimento do procedimento legal determinado pela Justiça Eleitoral para o ingresso de valores na campanha.

Desse modo, penso que, se houve concussão, o que somente a instrução poderá demonstrar, a aplicação dos recursos auferidos com a sua prática na campanha eleitoral caracterizaria, tão somente, o uso do produto do crime, e não o delito autônomo de lavagem de capitais.

Nesse sentido, o entendimento do STF segundo qual: É certo que os atos de aquisição, recebimento, depósito ou outros negócios jurídicos que representem o próprio aproveitamento (pelo agente ou terceiros), o desfrute em si, da vantagem patrimonial obtida no delito dito '‘antecedente’' não constituem o crime de lavagem (STF, HC n. 117475, relator Min. EDSON FACHIN, DJe-173 03.9.2015).

Logo, a tese defensiva comporta acolhimento, pois reconheço a atipicidade da conduta no que diz respeito ao suposto crime de lavagem de capitais, motivo pelo qual deve a denúncia ser rejeitada, nesta parte, por falta de justa causa, nos termos do art. 395, inc. III, do Código de Processo Penal, e art. 358, I, do Código Eleitoral.

4. Propaganda eleitoral no dia da eleição - art. 39, § 5º, III, da Lei n. 9.504/97

O delito de propaganda no dia do pleito fundamenta-se na acusação de que Gilmar Sossella teria enviado aproximadamente 11 mil mensagens de texto a eleitores na véspera da eleição e no domingo, dia do sufrágio.

Com relação ao tipo penal e à alegação de que o fato seria análogo à publicação de propaganda eleitoral em rede social, importa referir o entendimento do TSE no sentido de que é típico, para fins de apuração do delito previsto no art. 39, § 5º, III, da Lei das Eleições, o envio de mensagens de texto, em aparelhos telefônicos, via SMS, no dia do pleito:

Habeas corpus. Ação Penal. Art. 39, § 5º, III, da Lei nº 9.504/97. Trancamento. Atipicidade. Indícios. Impossibilidade. 1. É intempestivo o recurso ordinário em habeas corpus interposto após o tríduo legal. Todavia, é possível a análise das questões expostas no apelo, em face da possibilidade de concessão de ofício do habeas corpus, por flagrante ilegalidade ou abuso de poder. Precedentes do TSE e do STJ. 2. A aceitação da transação penal não prejudica a impetração de habeas corpus que pretende o trancamento de ação penal, por atipicidade. Precedentes do STJ e do STF. 3. O trancamento de ação penal na via do habeas corpus é medida excepcional, somente admitida quando se constata, de plano, a imputação de fato atípico, a ausência de indícios de autoria e de materialidade do delito ou, ainda, a extinção da punibilidade. 4. Não constitui fato evidentemente atípico, para fins de apuração do delito previsto no art. 39, § 5º, III, da Lei das Eleições, o envio de mensagens de texto, em aparelhos telefônicos, via SMS, no dia da eleição. Recurso não conhecido.

(TSE - RHC: 2797 SP, Relator: Min. HENRIQUE NEVES DA SILVA, DJE 17.9.2013.)

A acusação está suficientemente apresentada pela prova acostada aos autos. Conforme aponta a denúncia, o conteúdo dos torpedos restou demonstrado pelo Ofício (Of. MPC/TCE n. 119/2014) encaminhado pelo Procurador-Geral do Ministério Público de Contas do Rio Grande do Sul à Procuradoria Regional Eleitoral (informações que estão colacionadas no Procedimento Preparatório Eleitoral n. 1.04.100.000226/2014-91). Reproduzo o teor da mensagem eleitoral:

Gente Amiga do RS. Nestes 08 anos trabalhamos com muita determinação em várias ações que resultaram muitas conquistas em favor dos(as) Gaúchos(as). Sabemos que muito há por fazer. Neste sentido solicitamos seu apoio e seu voto nas eleições de 05 de Outubro a mais conquistas para você e ao RGS. Grande abraço e contem sempre conosco. Sossella. 12333

Ao tratar desse delito, o STF assentou que a norma tutela a liberdade do voto, impedindo que o eleitor seja importunado, enganado ou coagido para votar neste ou naquele candidato, e protege, também, a regularidade dos trabalhos eleitorais, fazendo referência aos ensinamentos de Suzana de Camargo Gomes (Crimes eleitorais. 41ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 165):

O que é vedado e, inclusive, constitui crime, é a conduta daquele que, no dia da eleição, divulga ou realiza propaganda eleitoral de molde a atingir a esfera do eleitor, através da abordagem, do aliciamento, da utilização de métodos de persuasão ou convencimento [...]. Saliente-se, que o tipo penal exige, para sua configuração, que a conduta seja realizada no dia da eleição, o que significa que o crime somente pode ser cometido durante o horário da eleição ou quando os eleitores estão se dirigindo ao local de votação.

(STF, AP n. 609, Relator Ministro LUIZ FUX, DJe 213 de 30.10.2014.)

Portanto, tenho que a conduta se amolda ao tipo e que a denúncia está amparada em elementos de prova suficientes para a deflagração da persecução penal, comportando juízo de recebimento.

5. Utilização de serviço ou prédio público com benefício político-partidário - art. 346 c/c o art. 377 do Código Eleitoral

A denúncia narra que Gilmar Sossella teria praticado o crime previsto no art. 377 do Código Eleitoral, infração de menor potencial ofensivo cuja penalidade está disposta no art. 346 do mesmo Código, devido à alegada utilização do seu celular funcional para expedição de mais de 60 mil mensagens de texto (torpedos sms) contendo propaganda eleitoral com pedido de votos:

Art. 377. O serviço de qualquer repartição, federal, estadual, municipal, autarquia, fundação do Estado, sociedade de economia mista, entidade mantida ou subvencionada pelo poder público, ou que realiza contrato com este, inclusive o respectivo prédio e suas dependências não poderá ser utilizado para beneficiar partido ou organização de caráter político.

Parágrafo único. O disposto neste artigo será tornado efetivo, a qualquer tempo, pelo órgão competente da Justiça Eleitoral, conforme o âmbito nacional, regional ou municipal do órgão infrator mediante representação fundamentada partidário, ou de qualquer eleitor.

 

Art. 346. Violar o disposto no Art. 377:

Pena - detenção até seis meses e pagamento de 30 a 60 dias-multa.

Parágrafo único. Incorrerão na pena, além da autoridade responsável, os servidores que prestarem serviços e os candidatos, membros ou diretores de partido que derem causa à infração.

Alega-se que, por tratar de aparelho e linha telefônica pagos pelo Poder Legislativo Estadual, os quais Gilmar Sossella possuía em razão da investidura no cargo de deputado, o fato caracterizaria o ilícito penal eleitoral em concurso formal com o crime de peculato (art. 312 do Código Penal).

Inicialmente, ressalto que o cometimento de possível infração cível em face da utilização do telefone funcional na campanha foi analisada por este TRE quando do julgamento da representação eleitoral por condutas vedadas antes referida, ajuizada pela Procuradoria Regional Eleitoral contra os denunciados.

No referido feito, postulava-se a condenação por cedência ou uso de bens pertencentes à administração pública, uso de materiais ou serviços custeados pelos governos ou casas legislativas, cedência de servidor público para trabalho em campanha eleitoral e exoneração de servidor público de suas funções, condutas vedadas previstas nos inc. I, II, III e V, do art. 73, da Lei n. 9.504/97, verbis:

Art. 73 - São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

I - ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária;

II - usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram;

III - ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal, salvo se o servidor ou empregado estiver licenciado;

[...]

V - nomear, contratar ou de qualquer forma admitir, demitir sem justa causa, suprimir ou readaptar vantagens ou por outros meios dificultar ou impedir o exercício funcional e, ainda, ex officio, remover, transferir ou exonerar servidor público, na circunscrição do pleito, nos três meses que o antecedem e até a posse dos eleitos, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados:

a) a nomeação ou exoneração de cargos em comissão e designação ou dispensa de funções de confiança;

b) a nomeação para cargos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais ou Conselhos de Contas e dos órgãos da Presidência da República;

c) a nomeação dos aprovados em concursos públicos homologados até o início daquele prazo;

d) a nomeação ou contratação necessária à instalação ou ao funcionamento inadiável de serviços públicos essenciais, com prévia e expressa autorização do Chefe do Poder Executivo;

e) a transferência ou remoção ex officio de militares, policiais civis e de agentes penitenciários;

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público;

Quando do julgamento do processo por este Colegiado, reconheceu-se tão somente a ilicitude relativa ao uso do telefone celular funcional para a divulgação de propaganda de campanha, conduta que foi enquadrada na hipótese descrita no inc. II do art. 73: usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram, por se tratar de material (aparelho) ou serviço (linha telefônica) que estavam custeados pelo Poder Legislativo Estadual.

Mas o tipo penal previsto no art. 377 do Código Eleitoral não trata do uso de materiais custeados por órgãos públicos. A norma penaliza a utilização do serviço realizado pela repartição pública, seu prédio ou suas dependências em benefício de um partido ou organização de caráter político.

É dizer: as infrações cível e penal não são equivalentes.

O crime previsto no art. 377 do Código Eleitoral destina-se especificamente a partidos políticos, protegendo prédios e serviços públicos de sua utilização indevida em benefício das agremiações.

A vedação não é específica para o período eleitoral, pois deve ser observada em qualquer época do ano. Ou seja, o crime não tem natureza sazonal, pode ser praticado em ano de eleições ou fora dele (STOCO, Rui; Stoco, Leandro de Oliveira. Legislação eleitoral interpretada: doutrina e jurisprudência. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 978. No mesmo sentido: Cordeiro. Vinícius; Silva, Anderson Claudino da. Crimes eleitorais e seu processo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 181).

Com a disposição do art. 377 do Código Eleitoral, a lei quer garantir o cumprimento dos propósitos do bem público, que deve estar a serviço da população e não em benefício de um grupo político (BEM, Leonardo Schmitt de; CUNHA, Mariana Garcia. Direito Penal Eleitoral. 2. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 268).

Assim, quanto ao bem jurídico tutelado, o art. 377 do Código Eleitoral objetiva impedir o favoritismo partidário e proteger a moralidade administrativa especificamente no que se refere ao uso de prédios públicos e de serviços públicos. Conforme leciona Suzana de Camargo Gomes (Crimes eleitorais. 4. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 123):

Trata-se de norma penal que visa impedir possa a organização administrativa estatal, bem como entidades congêneres, ser utilizada para atender partido ou coligação partidária.

Ora, não podem a estrutura administrativa, os órgãos, o patrimônio dos entes mencionados, ser desviados de suas finalidades precípuas, pertinentes à consecução do interesse público e a satisfação das necessidades sociais, para favorecer partido político ou organização de caráter político.

O bem juridicamente tutelado é a moralidade administrativa, que veda, justamente, possa a administração pública, seja a direta ou a indireta, ou os entes que com ela contratam, atender a interesses de partidos políticos ou de alguns de seus órgãos, ou mesmo de coligações partidárias ou de outros entes que perfilhem objetivos políticos.

Contrariamente, as condutas descritas no art. 73 da Lei das Eleições objetivam resguardar a igualdade de oportunidades entre os candidatos, prevendo vedações a agentes públicos durante o pleito.

A compreensão da figura típica demanda atenção à origem histórica a fim de se promover sua interpretação teleológica. Os partidos políticos são instituições que, durante o Estado Novo foram proibidas (1937-1945), retornaram somente com a redemocratização, em 1945, e precisaram se estruturar para promover atuação política.

Nesse contexto de deficiências de estruturação ou organização é que o art. 377 do Código Eleitoral de 1965 tratou de impedir que o conjunto predial da administração pública e os serviços prestados por entes públicos fossem desviados para a utilização pelos partidos.

Posteriormente, a fim de mitigar a vedação, foram editadas leis autorizando o uso de dependências de prédios públicos por partidos políticos em casos específicos. O art. 51 da Lei dos Partidos Políticos, Lei n. 9.096/95, assegurou às siglas, com estatuto registrado no TSE, o direito à utilização gratuita de escolas públicas ou casas legislativas para a realização de suas reuniões ou convenções.

Da mesma forma, a Lei das Eleições, Lei n. 9.504/97, permite, em seu art. 8º, § 2º, o uso gratuito de prédios públicos para a realização das convenções de escolha de candidatos; no art. 37, § 3º, estabelece que, nas dependências do Poder Legislativo, a veiculação de propaganda eleitoral fica a critério da Mesa Diretora; no § 2º do art. 73, autoriza o uso das residências oficiais dos chefes de Poder Executivo para a campanha, e do transporte oficial pelo Presidente da República candidato à reeleição.

A questão apresenta-se importante para o exame da adequação típica, porque nem o aparelho de telefonia celular nem a respectiva linha telefônica constituem um serviço da Assembleia Legislativa do Estado. Embora o material estivesse custeado pelo Poder Público Legislativo, razão pela qual seu uso caracterizou prática de conduta vedada, não se trata de objeto diretamente afeto ao trabalho que o órgão presta à sociedade, seja no exercício de sua função típica, seja no exercício da função atípica.

De igual modo, não se considera que o aparelho de telefonia celular possa ser equiparado à estrutura predial da Assembleia Legislativa ou às suas respectivas dependências.

Ou seja, a lei expressamente protege as estruturas prediais dos bens públicos e os serviços prestados por órgãos públicos, a fim de que cumpram seus propósitos, mas a denúncia narra a utilização de um telefone celular funcional.

Não desconheço que há entendimento no sentido de que a utilização de bens móveis pertencentes à administração pública poderia caracterizar a prática do delito. Há inclusive menção, na denúncia, ao uso de telefone fixo, aparelho de fac-símile e demais materiais pertencentes ao ente público que usualmente encontram-se instalados nas dependências das repartições.

Nesse sentido, é bem verdade que a doutrina atribui à expressão o serviço de qualquer repartição uma extensão bem ampla. Marcos Ramayana menciona que compreende máquinas, servidores públicos e bens em geral (Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p. 576). Joel José Cândido inclui ainda o uso de dinheiro ou créditos orçamentários, máquinas e maquinarias, mão de obra, papéis e materiais de expediente (Direito Eleitoral brasileiro. 11. ed. Bauru: Edipro, 2004, p. 284). Fávila Ribeiro acrescenta veículos e serviços de alto-falantes (Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Forense, 200, p. 674).

No entanto, em razão do princípio da reserva legal, o Direito Penal veda a analogia in malam partem.

Por isso, entendo que a pretensão da denúncia de abarcar, no conceito de serviço de qualquer repartição, o uso do aparelho de telefone celular funcional, é exegese que configura interpretação extensiva, que não pode ser utilizada em desfavor do réu, em respeito ao princípio da tipicidade, corolário do princípio da legalidade.

Colho, na jurisprudência do STJ, elucidativo precedente sobre a impossibilidade de utilização da analogia para aplicar a uma hipótese não prevista em lei disposição legal relativa a um caso semelhante:

Não obstante, tem-se como certo que referidas máximas interpretativas não podem se sobrepor aos princípios de Direito Penal, devendo, portanto, amoldar-se a eles.

De fato, na seara criminal, em virtude de se tratar de normas que podem levar à restrição da liberdade, sua interpretação não pode se dar de forma indiscriminada, sob pena de, por vezes, tudo ser crime, ou mesmo de nada ser crime.

Assim, deve-se lidar com normas expressamente delineadas, ou com possibilidade restrita de interpretação, segundo o crivo do próprio legislador, que expressamente permite, em alguns casos, a utilização de interpretação analógica, fixando um preceito casuístico seguido de uma norma genérica.

Contudo, interpretação analógica, admitida eventualmente, não se confunde com analogia, a qual é terminantemente proibida em Direito Penal. Com efeito, a analogia consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei, disposição legal relativa a um caso semelhante. No entanto, na seara criminal, tem-se que tudo que não for expressamente proibido é permitido, pois, se o legislador não previu dada conduta como criminosa, é porque não se mostra relevante na esfera penal, não podendo, portanto, ser abrangida por meio da analogia em malam partem. Ao ensejo, confira-se os ensinamentos de Rogério Greco:

“As condutas que o legislador deseja proibir ou impor, sob a ameaça de sanção, devem vir descritas de forma clara e precisa, de modo que o agente as conheça e as entenda sem maiores dificuldades. O campo de abrangência do Direito Penal, dado o seu caráter fragmentário, é muito limitado. Se não há previsão expressa da conduta que se quer atribuir ao agente, é sinal de que esta não merecer a atenção do legislador, muito embora seja parecida com outra já prevista pela legislação penal. Quando se inicia o estudo da analogia em Direito Penal, devemos partir da seguinte premissa: é terminantemente proibido, em virtude do princípio da legalidade, o recurso à analogia quando esta for utilizada de modo a prejudicar o agente, seja ampliando o rol de circunstâncias agravantes, seja ampliando o conteúdo dos tipos penais incriminadores, a fim de abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador, etc ”. (Curso de Direito Penal - parte geral . 5 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. p. 46 ).

[...]

(STJ, REsp 1022478 RN 2008/0009971-9, Relatora Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe 09.11.2011.)

Em se tratando de Direito Penal, não pode o intérprete dizer mais do que a lei realmente disse se a interpretação histórica da norma penal traz segurança sobre o seu sentido literal ou gramatical. Nas palavras de Nelson Hungria: A interpretação gramatical vale-se da letra e da sintaxe da norma legal para deduzir o seu sentido. É a mais simples e a menos subjetiva das formas de interpretação, deve preceder a qualquer outra, pois é de presumir-se, prima facie, que o legislador tenha sabido traduzir devidamente o seu pensamento (Comentários ao Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. I, t. I, p. 86).

Portanto, não havendo narrativa referente ao uso de prédio ou serviço público, em meu falível sentir, não há incidência do tipo.

Esse raciocínio vem reforçado pelo exame dos precedentes do TSE sobre a matéria, nos quais se observa que o enquadramento típico foi enfrentado em relação à utilização de imóveis públicos e de serviços prestados pelos respectivos órgãos, sem referências a bens móveis tal como o é um aparelho de telefone celular.

Em julgado emblemático do TSE, em processo envolvendo o então candidato à presidência da república, Fernando Collor de Mello, por utilização de funcionários públicos civis e militares de Alagoas na campanha de 1989, a Corte Superior Eleitoral ressaltou que o art. 377 do Código Eleitoral visa a evitar que as repartições públicas como um todo, inclusive os respectivos prédios e suas dependências, sejam utilizadas para beneficiar um partido político, razão pela qual o abuso do ente público constitui elemento objetivo essencial do delito, sem o qual não há caracterização do crime:

RECLAMAÇÃO. ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1989. UTILIZAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS CIVIS E MILITARES NA CAMPANHA DE CANDIDATO A PRESIDÊNCIA DA REPUBLICA. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITOS POLICIAL E JUDICIAL. APURACÃO DE SUPOSTO ABUSO DE PODER DE AUTORIDADE E PRATICA DO CRIME ELEITORAL PREVISTO NO ART. 346 C/C O ART. 377, DO CÓDIGO ELEITORAL. AUSÊNCIA DO ELEMENTO OBJETIVO ESSENCIAL DO TIPO PREVISTO NO ART. 377 - ABUSO DO ENTE PUBLICO PARA BENEFICIAR PARTIDO OU ORGANIZAÇÃO DE CARÁTER POLITICO.

DETERMINADO O ARQUIVAMENTO DOS INQUÉRITOS E JULGADA PREJUDICADA A RECLAMAÇÃO.

(TSE, Reclamação n. 11979, Resolução n. 17391 de 16.4.1991, Relator Min. PEDRO DA ROCHA ACIOLI, Publicação: DJ - Diário de Justiça, Data 07.6.1991, Página 7721 RJTSE - Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 3, Tomo 3, Página 324.)

Em decisão mais recente, nos autos do Recurso Especial Eleitoral n. 787421, foi examinado se a realização de reunião política em escola subvencionada pelo Poder Público Municipal, em benefício de candidata, atrairia a incidência do tipo penal do art. 346 c/c 377 do Código Eleitoral. No julgado, o TSE concluiu pela anulação do acórdão recorrido e determinou o retorno dos autos à origem para refazimento da dosimetria da pena de maneira fundamentada (TSE, RESPE n. 787421, Decisão monocrática de 22.4.2015, Relator Ministro Henrique Neves da Silva, DJE 27.4.2015).

O Agravo Regimental n. 8796, por sua vez, tratou da tipificação da conduta devido à realização de churrasco para funcionários municipais, ocorrido em repartição pública municipal e promovido por prefeito candidato à reeleição: 

Recurso Especial. Crime eleitoral. Agravo de instrumento. Crime. Art. 346, c.c. o art. 377 do Código Eleitoral. Candidato. Churrasco. Presença. Bem público. Dolo específico. Demonstração. Necessidade. Não ocorrência. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. Para a caracterização do tipo do art. 346 do Código Eleitoral exige-se a demonstração de que o candidato tenha dado causa à pratica de conduta vedada do art. 377 do CE e também a prova do dolo específico de beneficiar partido ou organização de caráter político.
(TSE, AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO n. 8796, Acórdão de 19.8.2008, Relator Min. JOAQUIM BENEDITO BARBOSA GOMES, Publicação: DJ - Diário da Justiça, Data 11.9.2008, Página 7 RJTSE - Revista de jurisprudência do TSE, Volume 19, Tomo 3, Página 109. )

Noutra decisão, pertinente a agravo interposto contra negativa de seguimento de recurso especial, foi referida a condenação por prática do delito previsto no art. 346 c/c 377 do Código Eleitoral, em face da utilização do serviço público de coleta de lixo e de tratamento odontológico aos necessitados, de modo a promover e beneficiar a imagem de partido e coligação partidária a fim de obterem votos a candidato à reeleição como vereador (AG n. 8684, Decisão monocrática de 09.8.2007, Relator Ministro José Gerardo Grossi, DJ 22.8.2007).

Por sua vez, no julgamento do Recurso Especial Eleitoral n. 25983, analisou-se a utilização de prédio de entidade subvencionada pelo poder público para a realização de campanha eleitoral:

RECURSO ESPECIAL. CRIME. ARTS. C.C. CÓDIGO ELEITORAL. VISITA. CANDIDATO. ENTIDADE SUBVENCIONADA PELA MUNICIPALIDADE. UTILIZAÇÃO. PRÉDIO. BENEFÍCIO. ORGANIZAÇÃO PARTIDÁRIA. NÃO-OCORRÊNCIA. RECEBIMENTO DE CANDIDATOS EM GERAL. SEGUIMENTO NEGADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

- Não caracteriza o crime dos arts. 346 c.c. 377, CE, a simples visita dos candidatos à sede da entidade que recebe subvenção da municipalidade.

- Os dispositivos visam coibir o uso efetivo e abusivo de serviços ou dependências de entes públicos ou de entidades mantidas ou subvencionadas pelo poder público, ou que com este contrata, em benefício de partidos ou organização de caráter político. Precedentes.

- Não se trata de exigir potencialidade do ato, mas o uso efetivo das instalações. - Agravo Regimental a que se nega provimento.

(TSE - ARESPE: 25983 DF, Relator: JOSÉ GERARDO GROSSI, Data de Julgamento: 13.02.2007, DJ 05.3.2007.)

Destaco também o acórdão do TSE no Habeas Corpus n. 543, impetrado nos autos de ação penal que tratou da prática delitiva mediante utilização das dependências de piscina pública municipal para estampar camisetas de propaganda eleitoral (Habeas Corpus n. 543, Relator Ministro José Augusto Delgado, DJ 02.3.2007).

Por fim, relembro que, recentemente, este Tribunal decretou a extinção da punibilidade, após homologação de transação penal, nos autos de inquérito que apurou a prática do delito previsto no art. 346, c/c art. 377, do Código Eleitoral, supostamente praticado por uma professora de escola pública municipal, pelo prefeito candidato à reeleição e seu vice, em face da realização de um trabalho escolar no qual os alunos da 3ª série do ensino fundamental deveriam escrever cartas com pedidos ao prefeito, que posteriormente compareceu à sala de aula para entregar as respostas aos alunos (Inq. 202-92, de minha relatoria, julgado em 17.11.2015).

Do contexto dos julgados citados, verifica-se que a mens legis relaciona-se a serviços prestados por órgãos públicos ou a dependências prediais dos entes da administração direta e indireta, não abrangendo a hipótese narrada na denúncia.

Inegavelmente, a utilização do telefone celular funcional para o envio de mensagens de propaganda eleitoral mostra-se irregular, tanto que houve condenação do denunciado pela prática desse fato, constando do acórdão inclusive a determinação de remessa de cópia dos autos ao Ministério Público Estadual para apuração de possíveis atos de improbidade administrativa.

Mas, conforme já referido, subsumir a ação à norma incriminadora prevista no art. 377 do Código Eleitoral evidencia um indevido alargamento do tipo, pois considerar que um aparelho de telefonia celular e a respectiva linha telefônica possam ser equiparados a serviço, prédio ou dependência de repartição pública, caracteriza verdadeira interpretação analógica da norma incriminadora.

Assim, considerando que a norma penal trata do serviço executado pela administração pública, do prédio em que o órgão público está situado e suas dependências, não fazendo referência à utilização de materiais ou serviços custeados pelos governos ou casas legislativas nos moldes em que previsto na legislação cível (art. 73, II, Lei das Eleições), forçoso reconhecer a atipicidade da conduta.

Nestes termos, concluo que o uso do telefone celular funcional não carateriza o tipo previsto no art. 346 c/c o art. 377, do Código Eleitoral, acolhendo a tese defensiva, motivo pelo qual a denúncia merece ser rejeitada quanto à imputação do delito, por falta de justa causa, com fundamento no art. 395, inc. III, do Código de Processo Penal, e art. 358, I, do Código Eleitoral.

6. Peculato - art. 312 do Código Penal

O não recebimento da denúncia pelo delito tipificado no art. 346, c/c o art. 377, do Código Eleitoral, afasta a competência desta Justiça Especializada para julgamento do crime conexo previsto no art. 312 do Código Penal - peculato.

Impõe-se o declínio da competência ao Tribunal de Justiça do Estado, face à prerrogativa de foro do Deputado Estadual Gilmar Sossella, nos termos do art. 95, inc. XI, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.

Conclusão

O art. 6º da Lei n. 8.038/90 dispõe que o Tribunal deve deliberar sobre o recebimento, a rejeição da denúncia ou da queixa, ou a improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras provas.

Conforme entendem as Cortes Superiores, o referido dispositivo tem a mesma amplitude do art. 397 do Código de Processo Penal, ao permitir não apenas a rejeição da denúncia, mas também a decisão de plano pela improcedência da ação, o que, por óbvio, inclui as hipóteses previstas na norma processual aludida (AgRg na APn. 697/RJ, DJe 15.10.2012, Relator Ministro Teori Albino Zavascki).

Também com essa orientação, o Plenário do STF, no julgamento da AP 630 AgR, Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 21.3.2012, registrou que, tanto a absolvição sumária do art. 397 do CPP, quanto o art. 4º da Lei 8.038/90, em termos teleológicos, ostentam finalidades assemelhadas, ou seja, possibilitar ao acusado que se livre da persecução penal.

Além disso, segundo o Superior Tribunal de Justiça, a fase de defesa preliminar - antes, portanto, do recebimento da denúncia - é o momento adequado para o réu formular pedido de absolvição sumária/improcedência liminar da acusação, nos exatos termos dos arts. 4º e 6º da Lei 8.038/90:

AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. AGRAVO REGIMENTAL. DECISÃO QUE NÃO CONHECE DE NOVO PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA FORMULADO PELO RÉU EM DEFESA PRÉVIA. PREVALÊNCIA DO RITO ESPECIAL, QUE ASSEGURA ESSA POSSIBILIDADE POR OCASIÃO DA DEFESA PRELIMINAR (ARTS. 4º E 6º, LEI 8.038/90). PRECEDENTES DO STF. AGRAVO IMPROVIDO.

1. Discute-se a possibilidade, em ação penal originária regida pela Lei 8.038/90, de se formular, em defesa prévia (após o recebimento da denúncia), pedido de absolvição sumária.

2. A fase de defesa preliminar - antes, portanto, do recebimento da denúncia - é o momento adequado para o réu formular pedido de absolvição sumária/improcedência liminar da acusação, nos exatos termos dos arts. 4º e 6º da Lei 8.038/90. Precedentes do STF.

3. O art. 394, § 2º, do CPP é expresso no sentido de que o procedimento comum não se aplica à hipótese regida por lei especial, não havendo, assim, que se falar em interpretação restritiva da lei, em prejuízo à defesa do acusado, quando, em verdade, é exatamente esta que, expressa e explicitamente, limita a pretensão do recorrente de novamente discutir, após o recebimento da denúncia, a possibilidade de absolvição sumária.

4. O processo, enquanto instrumento de realização da Justiça e consectário da manifestação de diversos valores constitucionais (v.g., direito de ação, direito de defesa, efetividade da prestação jurisdicional, razoabilidade, interesse público no desenvolvimento da ação penal em tempo razoável etc.), precisa caminhar de modo a tornar possível a convivência dos interesses envolvidos, sob pena de, ao se prestigiar exacerbadamente uma garantia, anular-se outra(s) com idêntico valor axiológico.

5. Agravo regimental improvido.

(AgRg na APn 675/GO, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Corte Especial, DJe 11.4.2014.)  (Grifei.)

A absolvição sumária é instituto garantista que objetiva evitar a persecução penal nos casos taxativamente elencados, podendo o magistrado julgar antecipadamente o mérito da demanda e absolver desde logo o acusado à luz do princípio do devido processo legal e de sua razoável duração. Na lição de Eugênio Pacelli (Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 111):

[...] defere-se ao magistrado, em juízo antecipatório, a possibilidade de afastar, o quanto antes (sem que se chegue à instrução), a pretensão punitiva - ainda que, por abstração, verdadeiros sejam os fatos alegados - por ausência de consequência jurídico-penal a eles, solucionando, desde logo, o próprio conteúdo de mérito do processo.

O art. 397 do CPP dispõe que o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I - existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime.

Pelos argumentos já expostos, os fatos  imputados a Gilmar Sossella foram considerados atípicos relativamente aos delitos previstos no art. 346, c/c o art. 377, do Código Eleitoral e art. 1º da Lei n. 9.613/98, conduzindo à improcedência da acusação nos termos da hipótese prevista no inc. III do art. 397 do CPP.

Com esses fundamentos, embora os judiciosos argumentos trazidos nas respostas acostadas aos autos, concluo que há lastro probatório consistente a amparar o recebimento da denúncia em relação ao possível cometimento dos delitos tipificados no art. 316 do Código Penal (concussão), art. 350 do Código Eleitoral (falsidade ideológica com finalidade eleitoral), e art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97 (propaganda eleitoral no dia da eleição).

Para corroborar tal conclusão, destaque-se, a exemplo de outros documentos que instruem a peça acusatória, o conteúdo do inquérito policial e das ações judiciais cíveis a que responderam os denunciados.

Além de o inquérito policial estar devidamente relatado com conclusão pelo indiciamento dos acusados (fls. 446-448), o feito foi instruído com cópia da representação por captação ou gastos ilícitos e conduta vedada a agente público a que responderam os recorrentes (anexo 1, volumes 1-6) e cópia do Procedimento Preparatório Eleitoral realizado pelo Ministério Público Eleitoral (anexo 1, volumes 7-11), documentos que guardam total pertinência com os fatos narrados na denúncia.

De toda essa farta documentação, não restam dúvidas de que a denúncia, longe de ser imprecisa e genérica, encontra-se lastreada em provas indiciárias suficientes para autorizar a persecução penal com o fito de serem apuradas as condutas narradas.

Nesta fase processual se está frente a mero juízo de admissibilidade da acusação, para o qual é necessário, a par da demonstração do fato tido como delituoso, não mais do que indícios de autoria, uma vez que vige o princípio in dubio pro societate, bastando a presença dos requisitos formais (art. 41 do CPP) e substanciais (condições da ação), não havendo afronta aos princípios e dispositivos legais invocados pelos denunciados nas respostas acostadas aos autos.

Desta feita, recebo em parte a denúncia, impondo-se dar curso à ação penal com a citação dos denunciados para apresentarem defesa prévia e realização de interrogatório dos réus ao final da instrução (art. 400 do CPP).

Diante do exposto, VOTO pelo recebimento parcial da denúncia, no sentido de:

a) RECEBER a denúncia oferecida em desfavor de ARTUR ALEXANDRE SOUTO em relação à suposta prática do delito tipificado no art. 316 do Código Penal (concussão);

b) RECEBER a denúncia apresentada contra GILMAR SOSSELLA em razão de indícios de cometimento dos delitos tipificados no art. 316 do Código Penal (concussão), art. 350 do Código Eleitoral (falsidade ideológica com finalidade eleitoral), e art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97 (propaganda no dia da eleição);

c) REJEITAR a denúncia, considerando IMPROCEDENTE A ACUSAÇÃO de prática dos crimes descritos no art. 346, c/c o art. 377, do Código Eleitoral e art. 1º da Lei n. 9.613/98, por falta de justa causa, nos termos do  art. 6º da Lei n. 8.038/90, art. 395, inc. III, e art. 397, inc. III, do Código de Processo Penal, e art. 358, I, do Código Eleitoral;

d) DECLINAR da competência quanto à imputação relativa ao crime previsto no art. 312 do Código Penal, devendo, após o trânsito em julgado desta determinação, ser extraída cópia integral do feito, inclusive dos anexos, para que sejam remetidas ao Tribunal de Justiça do Estado, devido à prerrogativa de foro do Deputado Estadual Gilmar Sossella, nos termos do art. 95, inc. XI, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, de modo que o órgão ministerial lá oficiante adote as providências que entender cabíveis;

e) ACOLHER a promoção de arquivamento do presente inquérito policial quanto aos indiciados Ivan Ferreira Leite, Jair Luís Müller, Ricieri Dalla Vallentina, Andreza Macedo Teixeira, Melania Beatriz Tonial Sossella e Fernanda Schnorr Paglioli, com a ressalva do disposto no art. 18 do CPP.

Reautue-se o feito na classe ação penal e, após, expeça-se mandado de citação aos denunciados, com cópias da inicial e do acórdão, a fim de que, querendo, ofereçam defesa prévia no prazo de cinco dias, nos termos dos arts. 7º e 8º da Lei n. 8.038/90.