RC - 2791 - Sessão: 22/10/2014 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso em processo-crime eleitoral interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL contra decisão do Juízo Eleitoral da 47ª Zona – São Borja, que julgou improcedente a denúncia oferecida contra LEANDRO RUIZ MENDES fundada no delito tipificado no art. 302 do Código Eleitoral, pela prática dos seguintes fatos :

No dia 07 de outubro de 2012, durante o dia do pleito municipal, Leandro Luiz Mendes promoveu, no dia da eleição, com o fim de fraudar o exercício do voto a concentração de eleitores, através do fornecimento gratuito de transporte coletivo.

Na ocasião, o denunciado estava conduzindo o veículo FIAT/BRAVA, de cor vermelha, placa GYC-1733, quando foi abordado pela Polícia Federal transportando eleitores que ainda não haviam votado e que votariam na Escola Estadual Arneldo Matter.

O veículo foi abordado na Rua João Manoel, próximo à Escola Estadual Arneldo Matter. Dentro do veículo, foram apreendidos os documentos constantes na fl. 45, conforme auto da fl. 43. Assim agindo, incorreu o denunciado Leandro Ruiz Mendes nas sanções do art. 302 da Lei n. 4.737/65, pelo que oferece o Ministério Público Eleitoral a presente denúncia, requerendo que, recebida e autuada, seja o denunciado citado para o interrogatório e defesa que tiver, inquiridas as testemunhas adiante arroladas, preenchidas as demais formalidades legais, até final julgamento e condenação.

A denúncia foi recebida no dia 21 de dezembro de 2012 (fls. 90-91).

Citado (fl. 93v.), o denunciado ofereceu resposta (fl. 118) e foi interrogado (fl. 213).

Após a instrução e a apresentação de memoriais, foi prolatada sentença de improcedência da denúncia diante da ausência de comprovação do elemento subjetivo do tipo (fls. 269-271).

Em suas razões recursais, o Ministério Público Eleitoral sustenta a existência de elementos suficientes nos autos acerca do elemento subjetivo (dolo) exigível na espécie criminosa. Pede a reforma da decisão, com a condenação do acusado (fls. 274-276v).

Apresentadas as contrarrazões (fls. 282-283), os autos foram com vista à Procuradoria Regional Eleitoral, que opinou pelo provimento do recurso da acusação, procedendo-se de ofício à emendatio libelli, a fim de dar-se definição jurídica diversa ao fato (fls. 286-290).

É o relatório.

 

VOTO

O recurso é regular, tempestivo e merece conhecimento.

Da Emenda à Denúncia

Inicialmente, verifico que assiste razão à douta Procuradoria Regional Eleitoral ao requerer a emenda à denúncia recebida.

Nos termos da inicial, Leandro Ruiz Mendes está sendo acusado de fornecimento gratuito de transporte de eleitores no dia da eleição, e foi denunciado pela conduta prevista no artigo 302 do Código Eleitoral.

Art. 302. Promover, no dia da eleição, com o fim de impedir, embaraçar ou fraudar o exercício do voto a concentração de eleitores, sob qualquer forma, inclusive o fornecimento gratuito de alimento e transporte coletivo: (Redação dada pelo Decreto-Lei n. 1.064, de 24.10.1969)

Pena – reclusão de quatro (4) a seis (6) anos e pagamento de 200 a 300 dias-multa. (Redação dada pelo Decreto-Lei n. 1.064, de 24.10.1969.)

A norma em comento, contudo, foi revogada pelo disposto no artigo 11, inciso III, c/c artigo 5º, da Lei n. 6.091/74, segundo já assentado na jurisprudência do TSE:

Crime. Condenação. Foro por prerrogativa de função. Prorrogação. Não-configuração. Autoria e materialidade. Dosimetria de pena. Análise. Correspondência. Prova dos autos. Exame. Inadmissibilidade. Reexame de prova. Vedação. Princípio da livre convicção do juiz. Preliminar. Nulidade. Rejeição. Fundamentação. Concentração de eleitores. Art. 302 do Código Eleitoral. Revogação. Parte final do dispositivo. Divergência jurisprudencial. Não-caracterização. Defensor dativo. Prazo em dobro. Não-aplicação.

[...]

5. O dispositivo que tipifica a concentração ilegal de eleitores (art. 302 do Código Eleitoral) teve somente revogada a sua parte final pelo disposto no art. 11, inciso III, da Lei nº 6.091/74.

[...]

(RESPE - RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 21401 - Rio Branco/AC, Acórdão nº 21401 de 13.04.2004 Relator Min. FERNANDO NEVES DA SILVA Publicação: DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Data 21.05.2004, Página 132.)

A doutrina, por sua vez, se manifesta no mesmo sentido:

A parte final da norma, composta pela expressão “inclusive o fornecimento gratuito de alimento e transporte coletivo”, está revogada pelo artigo 11, III, da Lei n. 6.091/74, e, portanto, não pode mais ser aplicada. A parte inicial do artigo até a palavra “forma”, inclusive, se mantém, já que continua a compor um tipo penal completo, harmônico e, portanto, aplicável.

Revogada essa parte final, ela não pode mais ser considerada parte integrativa deste art. 302 e, por ela, ninguém mais pode ser enunciado. Essa vedação está a integrar, agora, o crime do artigo 11, III, da Lei n. 6.091/74.

(CANDIDO, Joel. Direito Penal Eleitoral & Processo Penal Eleitoral. Bauru: Edipro, 2006, p. 198.) (Grifei.)

Percebe-se, portanto, que os fatos descritos na peça acusatória se amoldam ao delito tipificado no artigo 11, inciso III, c/c artigo 5º, da Lei n. 6.091/74, que regula o transporte de eleitores, cujas penas mínimas e máximas são idênticas às do artigo 302 do Código Eleitoral, in litteris:

Art. 11. Constitui crime eleitoral:

III - descumprir a proibição dos artigos 5º, 8º e 10:

Pena - reclusão de quatro a seis anos e pagamento de 200 a 300 dias multa.

 

Art. 5º. Nenhum veículo ou embarcação poderá fazer transporte de eleitores desde o dia anterior até o posterior à eleição, salvo:

I - a serviço da Justiça Eleitoral;

II - coletivos de linhas regulares e não fretados;

III - de uso individual do proprietário, para o exercício do próprio voto e dos membros da sua família;

IV - o serviço normal, sem finalidade eleitoral, de veículos de aluguel não atingidos pela requisição de que trata o art. 2º.

Em outra oportunidade, esta Corte, diante da mesma circunstância, já determinou a emendatio libelli:

Recurso. Insurreição contra decisão condenatório pela prática do delito previsto no art. 302 do Código Eleitoral. Preliminar afastada. Inocorrência da prescrição pretendida. Aplicação, de ofício, da emendatio libelli, atribuindo definição jurídica diversa aos fatos imputados, entendendo que melhor se amoldam ao delito tipificado no artigo 11, inciso III, c/c artigo 5º, da Lei n. 6.091/74. A prática do transporte de eleitores é delito de mera conduta, bastando o descumprimento de alguma das proibições legais previstas para sua caracterização.Configurada a intenção de obter o voto mediante o fornecimento de transporte, não havendo limitação geográfica para a incidência da norma. Autoria e elemento subjetivo do crime comprovados. Provimento negado.

(TRE-RS - RC: 100000185 RS , Relator: Dr. Eduardo Kothe Werlang, Data de Julgamento: 12.04.2012, Data de Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 62, Data 17.04.2012, Página 03.)

Tem-se que, respeitados os parâmetros do art. 617 do Código de Processo Penal, não há restrição à aplicação da regra do art. 383 em segunda instância, eis que o réu se defende dos fatos descritos na denúncia e não da definição jurídica que lhes foi dada pelo Parquet, nos termos da legislação de regência:

Art. 617 . O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e art. 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença.

Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008.)

Com essas considerações, acolho a promoção da Procuradoria Regional Eleitoral e procedo à emenda à denúncia, dando diversa definição jurídica aos fatos descritos na inicial, uma vez que se enquadram no delito capitulado no artigo 11, inciso III, c/c artigo 5º, da Lei n. 6.091/74, ao invés do artigo 302 do Código Eleitoral.

Mérito

No mérito, a sentença absolveu o recorrido por não vislumbrar nos autos a presença da finalidade eleitoral no agir noticiado, ou seja, o dolo específico consubstanciado na vontade deliberada do agente em obter vantagem de ordem eleitoral com o transporte.

Nas razões recursais o Parquet sustenta que a propaganda eleitoral, o comprovante de votação e a lista de nomes encontrada no veículo que o acusado dirigia, associados à prova oral, especificamente no que toca aos depoimentos das testemunhas: policial que efetuou o flagrante, Tiago Maurício Motta; servidora do Ministério Público Eleitoral que o acompanhava, Vanessa Wollenhaupt Chamorra; e um dos eleitores que estava sendo transportado, Márcio Fortes Garcia, demonstram de forma suficiente a autoria, a materialidade, bem como o elemento subjetivo do tipo, sendo suficientes ao decreto condenatório.

No entanto, a análise do caderno probatório dá conta que, de fato, não houve no fato narrado finalidade eleitoral que gravasse a conduta com a pecha de ilícita.

Segundo o auto de apreensão (fl. 15), ao ser abordado o veículo que o recorrido dirigia, foram localizados no automóvel um comprovante de votação no nome de Pamela Letícia Curvalo Poncio, 07 santinhos de propaganda eleitoral do candidato Cesar Finamor e uma lista manuscrita com 12 nomes: Dona Elvira, Dona Tereza, Seu Miguel, Seu Luiz, Seu Darci, Dona Santa Seu marido, Francisca da Deise Pate e o Pai Quadra, Francisca seu Antônio – manhã, Bitata e o filho, Saturnina, Dona Clair, Veinhos quadra C seu João e Nemires manhã. O material apreendido está acostado à fl. 48 dos autos.

A instrução logrou demonstrar que o comprovante de votação localizado no carro era da esposa de Leandro, Pamela Letícia Curvalo Poncio, que também utilizava o veículo, sendo natural que documentos seus lá estivessem. Além disso, Leandro é filho do candidato a vereador Cesar Finamor, cujos santinhos de propaganda estavam no automóvel.

Em juízo, Leandro afirmou que trabalhou na candidatura do pai e que o material estava lá desde o início da campanha, não tendo sido colocado com finalidade de distribuição aos eleitores.

Quanto à lista com nomes de pessoas, Leandro afirmou que pertencia a sua esposa, Pamela, que era agente de saúde e fazia visitas à população utilizando o carro. Por fim, no que tange aos eleitores transportados, Dilma Aparecida da Silva afirmou tanto na fase policial (fl. 14) quanto em juízo (fl. 246) que pediu a carona a Leandro para ir com seu marido, Márcio Fortes Garcia, que também foi transportado, até a casa de sua mãe, e que depois de ir até lá pretendia votar.

Márcio Fortes Garcia também afirmou em todas as suas declarações (fls. 13 e 244) que pediu a carona a Leandro para ir com sua esposa, Dilma Aparecida da Silva, até a casa de sua sogra, mãe de Dilma. Em nenhum momento referiu que Leandro forneceu a carona cm finalidade eleitoral.

Conforme bem aponta o Ministério Público Eleitoral, após a abordagem policial e a coleta das declarações na delegacia de polícia, Márcio e Dilma foram de carona com os policiais até seu local de votação para votarem, para não perder a viagem (fl. 245). No entanto, este fato não conduz por si só à conclusão de que ao dar carona para eles Leandro agiu com intuito eleitoral. Ambos afirmaram que não pediram carona para votar, queriam ir até a casa da sogra. Não há como se proceder à condenação porque, depois da prisão em flagrante e de todos os trâmites policiais, ao invés de ir da delegacia para o hospital, conforme haviam primeiramente pensado, foram para o local de votação.

Era dia de eleição, natural que fossem votar. E, mesmo que realmente existam algumas inconsistências nas versões apresentadas, verifico a existência de dúvidas que não autorizam a formação de um juízo condenatório.

Ademais, considerando que a instrução não logrou inquirir as pessoas relacionadas na lista encontrada no veículo ou mesmo a esposa de Leandro, Pamela, a quem a lista pertencia, entendo que os elementos de prova material não são hábeis a amparar o decreto condenatório, sendo razoáveis as ponderações de Leandro no sentido de que já havia sido avistado conduzindo seu carro pela polícia e pelo Ministério Público porque tinha levado sua família para votar, e que ao ser visto uma segunda vez, despertou injustificadas suspeitas.

O fato de os nomes dos dois passageiros que estavam com Leandro não constarem na lista encontrada no veículo também constitui elemento que milita a favor da tese defensiva de que não se tratava de lista de eleitores para serem transportados.

Reconhecida a ocorrência do fato e da autoria, é a finalidade da conduta que determinaria a condenação criminal, pois conforme assentado pela jurisprudência, o delito tipificado no art. 11, III, da Lei nº 6.091/74, de mera conduta, exige, para sua configuração, o dolo específico, que é, no caso, a intenção de obter vantagem eleitoral, pois o que pretende a lei impedir é o transporte de eleitores com fins de aliciamento (TSE, AgReg em RESP nº 28517, Relator Min. Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira, DJ: 05.09.2008).

É neste ponto que se instaura a divergência, circunstância que não autoriza a caracterização do crime em tela, conforme já reconhecido pela jurisprudência:

CRIME ELEITORAL. TRANSPORTE DE ELEITORES. INDISPENSABILIDADE DO DOLO ESPECÍFICO CONSISTENTE NO TRANSPORTE IRREGULAR COM O FIM DE OBTER VANTAGEM ELEITORAL. NECESSIDADE DE PROVA SEGURA DO AJUSTE DOS ENVOLVIDOS NA TROCA DE VOTOS PELO TRANSPORTE NO DIA DAS ELEIÇÕES. DÚVIDA FUNDADA SOBRE TER HAVIDO MERA CARONA DE UM DOS ACUSADOS A PESSOAS QUE SE ENCONTRAVAM NA CASA DE SUA IRMÃ, ONDE PASSOU NA VOLTA DE MIRASSOL, E QUE AINDA NÃO HAVIAM IDO VOTAR EM VIRTUDE DA CHUVA. DÚVIDA QUE NÃO PERMITE A CONDENAÇÃO DOS ACUSADOS. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO PENAL QUE SE MOSTRA DE RIGOR PELA INSUFICIÊNCIA DA PROVA ORAL PRODUZIDA EM JUÍZO.

(TRE/SP, PROCESSO CRIME DE COMPETENCIA DO TRIBUNAL nº 809, Acórdão nº 146792 de 25.09.2003, Relator FERNANDO ANTONIO MAIA DA CUNHA, Publicação: DOE - Diário Oficial do Estado, Data 07.10.2003)

Diante da dúvida a respeito da ocorrência do delito, impõe-se a manutenção da sentença absolutória.

Ante do exposto, VOTO no sentido de dar diversa definição jurídica ao fato descrito na denúncia, nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal, e negar provimento ao recurso.