PRESTAÇÃO DE CONTAS ELEITORAIS Nº 0600331-94.2020.6.21.0047 / 047ª ZONA ELEITORAL DE SÃO BORJA RS

RECORRENTE: CYNARA DOS SANTOS RODRIGUES - VEREADORA



 



Eminente Relator,

 

para conferir maior celeridade na tramitação das prestações de contas das eleições de 2020, os pareceres desta Procuradoria serão encaminhados em formato simplificado, como segue.

 

Trata-se de prestação de contas da candidata a Vereadora CYNARA DOS SANTOS RODRIGUES, relativamente às eleições de 2020 no município de São Borja.

 

A sentença desaprovou as contas, com fulcro no art. 74, III, da Resolução TSE nº 23.607/2019, em virtude da constatação de transferência de recursos do FEFC, no valor de R$ 2.000,00, a candidatos do gênero masculino, sem a indicação de benefício para a campanha da candidata doadora, contrariando o disposto nos §§ 6º e 7º do art. 17 da mesma Resolução. Foi determinado, ainda, o recolhimento da referida quantia ao Tesouro Nacional.

 

Irresignada, recorreu a prestadora.

 

No que se refere aos pressupostos de admissibilidade recursal, restam presentes todos os requisitos, quais sejam: tempestividade, cabimento, interesse e legitimidade para recorrer, inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer, e regularidade formal.

 

No mérito, a recorrente alega que, ao transferir R$ 1.000,00 para o candidato a vereador Luiz Carlos Moraes Rotta e R$ 1.000,00 para o candidato José Homero Vargas Loureiro, baseou-se no § 7º do art. 17 da Resolução TSE nº 23.607/2019, que permite o repasse desde que haja benefício para as candidaturas femininas. Nesse sentido, diz que estava apoiando os seus companheiros de partido almejando que estes atingissem um público alvo e assim, aumentassem seu número de eleitores, e ambos possuíssem condições de ser elegerem no pleito eleitoral de 2020. Afirma que não houve o comprometimento das contas, sendo caso de aplicação dos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, para afastar a desaprovação. Por fim, aduz que se encontra com sérias dificuldades financeiras, razão pela qual postula o parcelamento do valor devido, em quinze parcelas mensais de R$ 133,33, na forma da Resolução TRE nº 298/2017 (revogada pela Resolução TRE nº 371/2021).

 

Não assiste razão à recorrente.

 

Inicialmente, cumpre referir que a EC 117, que acresceu os §§ 7º e 8º ao art. 17 da Constituição Federal, dispondo sobre a obrigatoriedade da aplicação de recursos do fundo partidário na promoção e difusão da participação política das mulheres, bem como a aplicação de recursos desse fundo e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e a divisão do tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão no percentual mínimo de 30% (trinta por cento) para candidaturas femininas, dispôs, em seus artigos 2º e 3º:

 

Art. 2º Aos partidos políticos que não tenham utilizado os recursos destinados aos programas de promoção e difusão da participação política das mulheres ou cujos valores destinados a essa finalidade não tenham sido reconhecidos pela Justiça Eleitoral é assegurada a utilização desses valores nas eleições subsequentes, vedada a condenação pela Justiça Eleitoral nos processos de prestação de contas de exercícios financeiros anteriores que ainda não tenham transitado em julgado até a data de promulgação desta Emenda Constitucional.

 

Art. 3º Não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional.

 

Esse e. Tribunal tem decidido pela constitucionalidade e aplicabilidade imediata da referida anistia. Citamos, exemplificativamente, os julgamentos dos recursos eleitorais nº 0600464-52.2020.6.21.0075, relator o Des. Caetano Lo Pumo, ocorrido em 16.05.2022; e 0600269-08.2020.6.21.0127, ocorrido em 18.05.2022, relator o Des. Gerson Fischmann. Nesse último caso o eminente relator fez referência, em sua retificação de voto (após pedido de vista), a julgado recente do TSE, em que interpretado o alcance da nova norma (Prestação de Contas nº 060176555, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJE 06.05.2022). No acórdão referido, a Corte Superior estabeleceu, à unanimidade, no que aqui interessa, o seguinte (conforme delimitado na ementa):

 

2.3.1. A EC nº 117/2022 não excluiu a possibilidade desta Justiça Eleitoral, no exercício de sua competência fiscalizatória, de aferir a regularidade do uso das verbas públicas relacionadas ao programa de promoção e difusão da participação política das mulheres e ao financiamento das candidaturas de gênero. A gravidade dessa espécie de falha, aliás, se tornou ainda mais evidente com a constitucionalização da ação afirmativa.

2.3.2. A Justiça Eleitoral, antes de atestar se as despesas atendem à finalidade do inciso V do art. 44 da Lei nº 9.096/1995, verifica se o gasto se encontra comprovado à luz do art. 18 da Res.-TSE nº 23.464/2015. Somente após o reconhecimento da regularidade da despesa é que se verifica se houve o atendimento à específica finalidade do fomento à participação política feminina (PC nº 0601850-41/DF, de minha relatoria, de 7.10.2021).DJe

2.3.3. Recursos do Fundo Partidário indicados pela agremiação como aplicados no programa de fomento à participação feminina na política cuja documentação, além de não comprovar essa específica finalidade, é insuficiente para atestar a regularidade do gasto devem ser devolvidos ao erário (PC-PP nº 159-75/DF, rel. Min. Alexandre de Moraes, de 18.5.2021).DJe

2.3.4. No caso, o partido deveria ter aplicado no programa de incentivo à participação política feminina o mínimo de R$ 2.817.203,64. Contudo, da análise da quantia destinada à ação afirmativa, (a) R$ 1.403.724,77 são regulares com observância da finalidade; (b) R$ 101.294,42 são regulares sem observância da finalidade; (c) R$ 67.035,14 são irregulares para qualquer finalidade. Assim, a insuficiência da destinação mínima de recursos a que se refere o art. 44, V, da

Lei nº 9.096/1995 é de R$ 1.413.478,87.

 

Ainda, ficou assentado, nos termos do voto do relator: A referida EC nº 117/2022, portanto, não incide sobre a fase em que o Juízo Eleitoral analisa as glosas identificadas nas contas partidárias para, após, concluir pela sua aprovação, aprovação com ressalvas ou desaprovação (arts. 36 e 37 da Lei nº 9.096/1995 c.c art. 46, I a III, da Res.-TSE nº 23.464/2015).

 

Na linha do decidido pelo TSE, portanto: a) a anistia da EC 117 não implica aprovação das contas em que verificado o descumprimento da ação afirmativa; b) a anistia atinge apenas aquela parte da verba a ser aplicada no fomento das cotas de gênero e raça em relação à qual, a despeito da não observância da finalidade, tenha sido comprovada documentalmente a regularidade dos gastos, não possuindo o condão de afastar irregularidades nas despesas eleitorais; c) havendo a declaração de que a verba pública foi aplicada na ação afirmativa, essa aplicação deve estar devidamente comprovada, sendo que a não comprovação terá como consequência a determinação de devolução ao erário dos valores respectivos.

 

Portanto, à candidata que recebeu verba destinada ao fomento da cota de gênero cabe comprovar a correta destinação de tais valores, nos termos do § 6º do art. 17 da Resolução TSE nº 23.607/2019, o qual estabelece, verbis:

 

A verba do Fundo Especial de Financiamento das Campanhas (FEFC) destinada ao custeio das campanhas femininas e de pessoas negras deve ser aplicada exclusivamente nestas campanhas, sendo ilícito o seu emprego no financiamento de outras campanhas não contempladas nas cotas a que se destinam.

 

No caso, conforme apontado no parecer conclusivo, houve identificação de transferência de recursos do FEFC para a conta de candidatos homens, no valor total de R$ 2.000,00, sem a indicação de benefício para a campanha da candidata ora recorrente.

 

De fato, a prestadora não apresentou nenhuma prova de que os recursos do FEFC doados para candidaturas masculinas foram empregados para o pagamento de despesas comuns das quais tenha redundado benefício para sua própria campanha (hipótese admitida pelo § 7º do mesmo art. 17 citado). Em vez disso, limitou-se a sustentar a tese de que, uma vez sendo destinados recursos aos candidatos companheiros de partido, estes, ao aumentarem seu número de eleitores, aumentariam, por decorrência, as chances das candidatas mulheres.

 

A vingar semelhante tese, não haveria nenhuma necessidade da regra contida no § 4º do art. 17 da Resolução TSE nº 23.607/2019, de que os partidos políticos devem destinar no mínimo 30% (trinta por cento) do montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para aplicação nas campanhas de suas candidatas – a qual, como se viu, vem de ser constitucionalizada pela via da EC 117. Bastaria ao partido destinar a totalidade dos recursos do FEFC para candidatos homens, sendo que estes, obtendo mais votos, também ampliariam as chances das candidatas mulheres. Ocorre que, se assim fosse, somente os candidatos homens preencheriam as vagas destinadas ao partido, frustrando, de maneira clara, a finalidade da ação afirmativa.

 

É dizer, para obter uma vaga no legislativo, não basta que outros candidatos da legenda obtenham votos. É necessário, igualmente, ficar bem posicionado na ordem de votação, e para isso a propaganda da própria candidatura faz diferença.

 

Convém, no ponto, colacionar trecho da sentença:

 

O que ocorre nos autos, contudo, é nítido desvio de finalidade, concretizado na transferência de valor a fim de custear, sem qualquer vantagem ou contrapartida à doadora, campanha eleitoral 0600328-42.2020.6.21.0047, quando, em verdade, tais valores deveriam ser geridos exclusivamente pela candidata doadora, buscando alavancar sua própria candidatura.

Não há a alegada ambiguidade na norma, conforme alegado pela prestadora. Em qualquer hipótese de transferência ou doação de valores destinados a campanhas femininas, deve haver benefício à candidata em questão. Garantir que seu adversário angarie mais votos não beneficia ninguém, a não ser o beneficiário da doação.

 

Cumpre referir ainda que o total de receitas declarado na Prestação de Contas do candidato Luiz Carlos Moraes Rotta (0600327-57.2020.6.21.0047) foi de R$ 1.937,00, sendo R$ 937,00 de bens estimáveis em dinheiro e R$ 1.000,00 oriundos da doação feita pela candidata Cynara. José Homero Vargas Loureiro, por sua vez, quando da prestação de contas (0600334-49.2020.6.21.0047), declarou receita no total de R$ 2.803,00, sendo R$ 937,00 de bens estimáveis em dinheiro, R$ 866,00 de recursos próprios e R$ 1.000,00 oriundos da doação feita pela candidata Cynara. Ou seja, a totalidade da receita financeira empregada na campanha de Luiz Carlos e a maior parte da empregada na campanha de José Homero foram bancadas pela recorrente, com recursos que deveriam ter sido destinados à promoção da candidatura feminina.

 

 

De se destacar, outrossim, que o PSB de São Borja lançou seis candidatas à vereança no pleito de 2020. Destas, apenas a candidata Cleidi de Fátima Sloma (PC nº 060033-64.2020.6.21.0047) não recebeu recursos do FEFC “Mulheres”. Quanto a todas as outras (cinco), tem-se o seguinte quadro:

 

 

 

 

Portanto, identifica-se a existência de um modus operandi consistente no encaminhamento de recursos destinados às candidaturas femininas para as candidatas do partido, as quais em seguida faziam doações para custeio das campanhas dos candidatos homens, em evidente burla à política pública.

 

No caso presente, tem-se que não foi comprovada a utilização em benefício da candidatura da recorrente de parte dos recursos públicos do FEFC destinados à quota de gênero (dois terços dos R$ 3.000,00 do “FEFC Mulheres” que lhe foram direcionados tiveram aplicação irregular), em prejuízo à efetividade da ação afirmativa em comento. Assim, o valor de R$ 2.000,00 doado aos candidatos Luiz Carlos Moraes Rotta e José Homero Vargas Loureiro caracteriza-se como gasto eleitoral realizado em desacordo com o art. 17, §§ 6º e 7º da Resolução TSE nº 23.607/2019, sujeitando-se ao recolhimento ao Tesouro Nacional nos termos do § 9º do mesmo artigo.

 

Por outro lado, considerando que a irregularidade, no valor de R$ 2.000,00, representa 48,75% das receitas declaradas pela prestadora (R$ 4.102,00) e é superior a R$ 1.064,10, deve ser mantida a desaprovação das contas, restando afastada a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

 

Por fim, inviável acatar, na presente fase processual, o pedido de parcelamento, o qual deverá ser deduzido quando do cumprimento da sentença.

 

Ante o exposto, o Ministério Público Eleitoral opina pelo conhecimento e desprovimento do recurso, mantendo-se a desaprovação das contas e a determinação de recolhimento de valores ao erário.

 

Porto Alegre, 11 de junho de 2022.

 

 

 

José Osmar Pumes,

Procurador Regional Eleitoral.